domingo, 6 de setembro de 2009

Aparições: as ventanias, à noite de Antonio Cândido Portinari

As ventanias, à noite

Davam-nos um medo, um medo

Comprido. Elas traziam todas

As assombrações. As árvores



Retorciam-se e assobiavam

Forte. Nossas

Casas frágeis, muitas vezes

Eram destelhadas. Ninguém



Dormia. Os relâmpagos

Pareciam serpentes endemoniadas

Pegando fogo. Ao amanhecer

A claridade trazia-nos alegria,



Mesmo que os estragos fossem

Grandes. Quase sempre lamentávamos

A morte de um pinto ou a

Ausência do cabritinho.



Nunca mais vi o vento.

Seria um bando de almas penadas

Em fúria? ou a queda de alguma

Estrela?





Muito branco, macilento, uns fiapos

Alourados no bigode. Roupas sem cor.

Desbotadas. Emitia alguns sons.

Chapéu afunilado e roto.



Sempre trazia as mãos atrás das

Costas. Entrava em algumas casas

E se dirigia à cozinha. Alimentava-se

Os meninos o



Acompanhavam. Tinham pena dele

Tinham-lhe simpatia. Às vezes ia pelas

Estradas e voltava depois de três

Ou quatro dias todo avermelhado



Da terra das fazendas de café.

Ângelo bobo era irmão de todos.

Um dia caminhou, caminhou

Foi até o fim do mundo.



Montado no galho de uma árvore do pasto

Tocava bombardino. Os anjos dos arredores

Vinham me acompanhar com seus violinos

Os bois se aglomeravam silenciosos

Para nos ouvir. O sol retardava

A descida e a lua se avivava.

Minha alegria era imensa. Aos poucos vinha

O escuro me amedrontava, e os anjos

Se iam. A música cessava. Os bois,

Um atrás do outro, tomavam seu trilho.

Sozinho tratava de sair, assobiava

Ligeiro e forte, numa carreira chegava

Em casa. A luz mortiça do lampião

Projetava nas paredes sombras

Movediças e inquietantes.

Nessas noites ficava com os nervos

Expostos, qualquer ruído me atemorizava.

Nunca mais vi os anjos e nem o bombardino.



Numa madrugada fria a lua nos dava

Pequena e bruxuleante claridade.

Saía-se cismando por ali afora.

Quem se lembra das frutas-de-lobo,

Com suas flores roxas e galhos espinhentos?

Não lhe sabíamos a serventia. Era voz

Corrente sua aliança com o diabo

E as visitas constantes dos urubus ...

O Saci-Pererê trançava-lhe os galhos.

As goiabeiras quando nasciam

Espiavam para todos os lados

Se a vista as alcançava,

Tratavam de nascer em outro sítio.

Os pássaros jamais pousavam nelas,

Mas se acontecesse, tínhamos certeza

De que eram forasteiros. Um dia uma

Saindo correndo atrás das crianças

Que lhe atiravam pedras.



Gosto dos rios, do seu aspecto manso.

Onde nasci não os há, só existem córregos.

As águas incautas vão ligeiras e nos

Moinhos são estranguladas. Avisam-nos

Do perigo dos redemoinhos. Em toda

Parte os avistávamos, até no campo.

Iam deslizando,

Perdiam-se ao longe.

Vi o primeiro rio, parecia um mar

Foi o Pardo; atravessava cidades.

Dele tiravam areia, peixe e muita maleita.

Suas margens eram povoadas de almas

Penadas: senhores de escravos apareciam

A certas horas e em determinados

Lugares – em grande barco negro.

Dos seus dedos saía fogo.



Se a calda do cometa

Relar na terra, o mundo

Acabará, comentavam os

Homens do meu povoado.



Nós parávamos de brincar.

Ficávamos vigilantes

Olhando o céu. De vez em

Quando alguém dizia: ele

Passou correndo e escondeu-se

Atrás das outras estrelas!

Protestávamos:

__ Você o que viu foi a

Alma penada

Vivíamos entre o sonho

E o medo. Acabaram-se os cometas.



Quantas vezes montado

Nas árvores fazia grandes

Viagens. O silêncio no campo

Nos transportava para longe.



Entrávamos no mundo

Desconhecido. A imaginação

Varava as nuvens e o vento.

Ao nosso redor os zebus pastavam.



O mugir de algum assustava-nos

E caíamos na realidade.

Já começavam as aparecer as sombras da noite.



Infância atribulada.

Nos dias de assassinatos

A noite era de pesadelos.

Sofrimentos.

Só no campo havia

Tranqüilidade.

Caminhava pelo trilho dos animais

Ali sonhava com tanta intensidade!

Ao longe via príncipes,

Princesas e o rei amigo. Sentia-me

Em outras cidades. Em qualquer

Seria melhor.

Os medos e a morte viviam

Em meu povoado.



De mãos dadas com uma

Anja de grande beleza.

Seu aparecimento transformou-me:

Perdi o juízo. Um dia levou-me

Ao paraíso. Vi meus velhos amigos,

Falei-lhes insistentemente,

Mas eles não me olhavam, não deram por mim

As flores eram imensas. Não vi

Nenhum santo conhecido.

Saí triste pensando em meus amigos.



Quantos mortos vi passar! Vejo ainda

Os enterros dobrando a praça. Homens silenciosos

E escuros, vindos das fazendas distantes,

Trazendo o caixão negro, cansados do

Longo caminhar. Meu cérebro se

Enchei de caixões pretos, assombrações,

Pavor. Alguém mais velho vinha

Fazer-me companhia.

Ao amanhecer o sol afugentava

Todos os medos.



Muitas vezes ia ao campo caçar

Lobos e tigres: enchia o embornal

De pedras e levava o estilingue.

Voltava sem caça. Não existiam

Essas feras em nosso campo:

Experimentava apenas minha coragem ...



Minha vida é tua presença

Teu espírito, tua voz, tua pele e

Teu corpo. Tua claridade ilumina o escondido

Até o céu caminhemos de mãos dadas



Pelo azul. Perto das estrelas mais luminosas.

Sem te tocar, meu corpo incendeia-se

Se acontecesse também a ti ...

Unidos num corpo só.



Um dentro do outro

Como pássaros invisíveis

Na inocência criaríamos o bem permanente.



Rio, agosto de 1961.

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