domingo, 31 de maio de 2009

Filho do Universo, de Nelson Mandela

"Nosso medo mais profundo
não é o de sermos inadequados.
Nosso medo mais profundo
é que somos poderosos além de qualquer medida.
É a nossa luz, não as nossas trevas,
o que mais nos apavora.
Nós nos perguntamos:

Quem sou eu para ser Brilhante,
Maravilhoso, Talentoso e Fabuloso?
Na realidade, quem é você para não ser?

Você é filho do Universo.

Se fazer pequeno não ajuda o mundo.
Não há iluminação em se encolher,
para que os outros não se sintam inseguros
quando estão perto de você.

Nascemos para manifestar
a glória do Universo que está dentro de nós.
Não está apenas em um de nós: está em todos nós.
E conforme deixamos nossa própria luz brilhar,
inconscientemente damos às outras pessoas
permissão para fazer o mesmo.
E conforme nos libertamos do nosso medo,
nossa presença, automaticamente, libera os outros."

(Versão livre por esse cidadão do mundo)

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quarta-feira, 27 de maio de 2009

Pequeno breviário Shawiano, de Bernard Shaw

Não há amor mais sincero que o da comida.

Cabe à mulher casar-se o mais cedo possível e ao homem ficar solteiro o mais tempo que pode.

A minha especialidade é ter razão quando os outros não a têm.

Quando um tolo pratica um ato de que se envergonha, declara sempre que fez o seu dever.

Quem nunca esperou não pode desesperar nunca.

Uma vida inteira de felicidade? Ninguém agüentaria: seria o inferno na terra.

O pior crime para com os nossos semelhantes não é odiá-los, mas demonstrar-lhes indiferença: é a essência da desumanidade.

Há duas tragédias na vida: uma, a de não alcançarmos o que o nosso coração deseja; a outra, de alcançá-lo.

Os ingleses nunca hão de ser escravos: eles são livres de fazer tudo o que o Governo e a opinião pública lhes permitem fazer.

(Jogo de xadrez) É um expediente tolo para fazer com que pessoas preguiçosas acreditem que estão fazendo algo muito inteligente, quando estão apenas perdendo tempo.

O lar é a prisão da moça e o hospício da mulher.

O martírio... é a única maneira de ganhar fama sem ter competência.

Quem deseja uma vida feliz com uma mulher bonita assemelha-se a quem quisesse saborear o gosto do vinho tendo a boca sempre cheia dele.

Não faças aos outros o que queres que te façam; os gostos deles podem ser diferentes dos teus.

Neste mundo sempre há perigo para aqueles que o temem.

Há apenas uma única religião, embora dela exista uma centena de versões.

Nunca espero nada de um soldado que pensa.

Sou abstêmio apenas de cerveja, não de champanha.

Não gosto de sentir-me em casa quando estou no estrangeiro.


George Bernard Shaw (1856-1950), polemista e dramaturgo, nasceu em Dublin e iniciou sua carreira como crítico de artes. Exercitou a ficção e o ensaio, mostrando o poder de fogo da ironia cortante e a visão do mundo peculiar em que vivia. Consagrou-se no teatro, deixando clássicos como "A profissão da sra. Warren" (1902) e "Pigmalião" (1913), esta última, sua peça mais popular, e que, em 1964, deu origem ao filme "My fair Lady". O autor foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1925.

terça-feira, 26 de maio de 2009

O amor antigo, de Carlos Drummond de Andrade

O amor antigo vive de si mesmo
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino não nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

(OBRA COMPLETA, ED. AGUILAR, "NOTÍCIAS AMOROSAS", PAG.346)

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domingo, 24 de maio de 2009

Breve me mudo, da minha queridíssima amiga Marina Colasanti.

Estou de partida . Breve me mudarei para a curva do teu braço.
Busco a terra sem vento, a mansa terra do teu peito. E a batida surda
e quente do magma mais profundo para embalar o meu sono. Busco a
tranqüilidade da enseada.
Já conheci as águas que eu preciso saber. Fui bem além das colunas de
Hércules, e há muito descobri que, por mais longe o mar, jamais
despenco.


Desbravei os mares, lancei-me por entre espumas. Naveguei seguindo as
estrelas do céu, contando as estrelas do mar, até chegar a portos dos
quais nem suspeitava a existência.


Agora é tempo de lançar meus braços'a água, deixando que enlacem nos
rochedos ancorando - me ao meu destino.
Escolho o teu lado esquerdo , onde me beija o sol poente. E espero que
tua mão direita amaine minhas velas.


Assim, acima do teu coração, encosto a cabeça.
E pequena como um grão, deito raízes.
Aprenderei a conhecer-te através da planta dos meus pés, como o cego
sabe onde pisa, como o índio que conhece a trilha.


Se for mansa a maré das colinas, terei certeza de que dormes, ou
pensas em silêncio.Se de repente meu solo se encrespar tangido por um
vento só seu, será o frio que te toca. O medo, saberei no tremor
subterrâneo. E quando o suor correr farto enchendo rios sem peixes,
ameaçando me levar, será tempo de calor,será o verão cantando na tua
pele.


Aprenderei a tatear-te com as mãos, procurar meus caminhos nos vales
dos músculos. Fluirei devagar, dormirei nas axilas.
Não preciso de casa.
Não preciso de abrigo.
A terra de tua carne é quente, e nada me ameaça. Posso deitar-me nua,
tranqüila, ou ficar acordada olhando para o alto. O céu é calmo, as
nuvens passam indo a outros lugares. Nenhuma traz a chuva ou a
tempestade.


Não preciso de pente, não preciso de panos. O orvalho da tua pele me
banha de manhã, e a tua respiração arruma os meus cabelos.
Só quero um cavalo.
Galoparei com ele as dunas do teu corpo, descerei pelos braços,
avançarei pelas mãos, arriscando-me a queda nos penhascos dos seus
dedos.


Explorarei teu ventre, matarei minha sede no poço do teu umbigo. E
armada de desejo, penetrarei na selva de teus pêlos, emaranhada e
perfumada noite, delta dos sumos, labirinto que imperioso me chama e
suave me perde.


Só depois, percorridas as pernas, visitado os pés, voltarei corpo
acima ; ventre, peito, subindo em peregrinação até o pescoço,
repousando no vale da omoplata.
Talvez leve um cantil, para a dura escalada do teu queixo. Subirei com
cuidado, procurando a caverna das orelhas para repouso e abrigo.
Barulho não farei, prometo. Nada que te perturbe.


Talvez no dia seguinte, ou mais ainda, passando-se outro dia na
difícil subida , eu procure chegar até os teus olhos.
Se estiverem fechados , sentarei com paciência esperando o milagre da
íris descoberta, o nascer dos olhos que se renova a cada despertar, o
astro de luz surgindo sob o horizonte da pálpebra . Se estiverem
abertos, sentarei a beira deste lago, fonte, olho d'água, encantada
com a dança dos reflexos ilusórios, peixes deslizando suas sombras
sobre um fundo sem algas. E haverá um momento em que vencendo o medo,
mergulharei na transparência para nadar em direção ao redemoinho negro
da pupila.


A aresta do nariz é perigosa.
Eu bem conheço sua linha sinuosa , sua falsa maciez sobre o duro arcabouço.
Não convém que a acompanhe. Seguirei pelo lado, encostando -me as
ventas, esgueirando-me para não ser tragada. Não tentarei desvendar o
mistério do sopro.


A boca chegarei com respeito. Irei pelo canto, para descer ao lábio
inferior, o mais carnudo. Avançarei deitada, rastejando de leve na
pele úmida, até chegar a borda. E me debruçarei sobre suas palavras...

Breve me mudo para a curva do teu braço.
Não saberei mais de você do que já sei.
Nem você saberá mais de mim.
Mas talvez assim tão perto , encostada na raiz do teu ser, eu possa me
esquecer de onde começo, e me esquecer em ti na minha entrega....

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sexta-feira, 22 de maio de 2009

Soneto XXVIII, de Shakespeare

Busco, à noite, o meu leito, exausto da labuta,

pois é justo um repouso aos membros fatigados.

Nova jornada, entanto! É meu cérebro em luta

com o pensamento vivo, e os sonhos acordados.



Romaria ou vigília?... Eu sei que não me escuta

tão longe de onde estou, por mal dos meus pecados,

aquela por quem vivo. E o coração disputa

às estrelas do céu seus olhos encantados.



Bem abertas mantendo as pálpebras dormentes,

cego, na escuridão, sinto mais que os videntes

que falta em sua face a luz do mar que é puro.



Assim, de dia ao corpo, e de noite, à minha alma,

por que hão de me roubar ao espírito a calma

que esse amor não me deu porque foi tão perjuro?

(Tradução de Gomes Filho)

quinta-feira, 21 de maio de 2009

O poço, de Pablo Neruda

Cais, às vezes, afundas
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profunduras da tua existência.

Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?

Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.

Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.

Radiosa me sorri
se minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.

Dá-me amor, me sorri
e me ajuda a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.

Pablo Neruda

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terça-feira, 19 de maio de 2009

Carta, de Carlos Drummond de Andrade

“Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe” e, a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.”


(in Ed. Aguilar, “Obra Completa”, 1964, Lições de Coisas/Ser pag. 349)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A vida (autor desconhecido, mas atribuído a Charlie Chaplin)

Já perdoei erros quase imperdoáveis, tentei substituir pessoas insubstituíveis e esquecer pessoas inesquecíveis.
Já fiz coisas por impulso, já me decepcionei com pessoas quando nunca pensei me decepcionar, mas também decepcionei alguém.
Já abracei pra proteger, já dei risada quando não podia, fiz amigos eternos, amei e fui amado, mas também já fui rejeitado, fui amado e não amei.
Já gritei e pulei de tanta felicidade, já vivi de amor e fiz juras eternas, "quebrei a cara muitas vezes"!
Já chorei ouvindo música e vendo fotos, já liguei só para escutar uma voz, me apaixonei por um sorriso, já pensei que fosse morrer de tanta saudade e tive medo de perder alguém especial (e acabei perdendo).
Mas vivi, e ainda vivo! Não passo pela vida… E você também não deveria passar!
Viva! Bom mesmo é ir à luta com determinação, abraçar a vida com paixão, perder com classe e vencer com ousadia, porque o mundo pertence a quem se atreve e a vida é "muito" pra ser insignificante.

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domingo, 17 de maio de 2009

O bêbado e a equilibrista, de João Bosco

Caía
A tarde feito um viaduto
E um bebado trajando luto
Me lembrou Carlitos

A lua,
Tal qual a dona dum bordel,
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens,
Lá no mata-borrão do céu,
Chupavam manchas torturadas...
Que sufoco!

Louco,
O bêbado com chapéu côco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil.
Meu Brasil

Que sonha
Com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete

Chora a nossa pátria, mãe gentil,
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil

Mas sei
Que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente...
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha,
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar

Azar,
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar

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sábado, 16 de maio de 2009

Deixa que eu te ame, do meu amigo querido Hélio Pellegrino

Ah! Deixa que eu te ame! Fazei
De tua profissão de sonho a fé desesperada...
Ilumina a incursão de meus dedos calmos
Através de teu corpo infinito... Deixa que eu te ame!

Nunca esse amar assim foi meu desejo. Entanto,
O céu corre para o céu a as sombras convergem
Num ponto exasperado, onde ardem candelabros...
deixa-me ficar, como esquecido do próprio nome,

Cego, a recompor os jogos que a infância indestinou...
O verde chama o verde. A esperança de ti salta
Como a correria de crianças num pátio de colégio...
Atrás dos vidros, porém, está o tédio espreitando,

E - ai de mim! - nem mesmo a poeira cobre o meu rosto,
Pobre e lívido, entre relâmpagos que paralisam o tempo
Desesperado aguardo - deixa, deixa que eu te ame!
Enche teu corpo de azul que escorre das arvores devassadas,

Planta teu grito longe, bem longe, onde os limites se curvam!
Vendo o tempo esgotar sua provisão de cores
Dizei uma palavra que fica ao léo das invernadas que flutuam.,
Vendo o tempo esgotar sua provisao de cores,
E leve se deitar, para aguardar seu sono...

Por que o chão está encharcado? E a chuva principiando
Nas cinzas dos brasões, como uma flor que murcha?
Esquece em meu peito a mão e escuta como bate
O coração pressuroso de espadas a cimitarras em repouso...

Não crês? Não vês? Ouve meus olhos perfurados de vigília,
Esboça teu movimento, cumpliciado ao afã dos salões amigos.
E enxerga nos moveis a efígie de meu rosto soluçando,
Entre vitrais que se partem ao aceno de um porto...

Olha as grandes cidades... As chaminés se levantam,
Ao mesmo tempo que milhoes de adeuses desabrocham como fontes ...
Parto em busca de mim. Nos navios de prata.
Vejo ainda o teu perfil - Ah, deixa que eu to ame!

Meu mistério está além. E além o vento sopra
Arcado de presságio. As pedras se ajoelham,
E os lábios se partem de encontro as amuradas
Largas e calmas, a espera de ti - por entre palmas!

Deixa que eu te ame! Nada podes deter,
Senão que teu braço comanda partidas de barcos ao mar alto. . .
Larga teu corpo ao meu... Junta teus seios
Ao meu engano. . . Deixa que eu te ame, assim, em silêncio,

Vendo a luz que se apaga e não se acende mais,
Vendo a calma voltar como a ave que esmorece,
Vendo o passo na relva, coberto da silente
Paz, entre as aléas, a marginar o sonho . . .


(Antologia da Nova Poesia Brasileira ,Editora Civilização Brasileira,1948)

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quarta-feira, 13 de maio de 2009

Os lados, de Paulo Mendes Campos

Há um lado bom em mim.
O morto não é responsável
Nem o rumor de um jasmim.
Há um lado mau em mim,
Cordial como um costureiro,
Tocado de afetações delicadíssimas.

Há um lado triste em mim.
Em campo de palavra, folha branca.

Bois insolúveis, metafóricos, tartamudos,
Sois em mim o lado irreal.

Há um lado em mim que é mudo.
Costumo chegar sobraçando florilégios,
Visitando os frades, com saudades do colégio.

Um lado vulgar em mim,
Dispensando-me incessante de um cortejo.
Um lado lírico também:

Abelhas desordenadas de meu beijo;
Sei usar com delicadez um telefone,
Nâo me esqueço de mandar rosas a ninguém.

Um animal em mim,
Na solidão, cão,
No circo, urso estúpido, leão,
Em casa, homem, cavalo...

Há um lado lógico, certo, irreprimível, vazio
Como um discurso,
Um lado frágil, verde-úmido.
Há um lado comercial em mim,
Moeda falsa do que sou perante o mundo.

Há um lado em mim que está sempre no bar,
Bebendo sem parar.

Há um lado em mim que já morreu.
Às vezes penso se esse lado não sou eu.



Paulo Mendes Campos (Belo Horizonte 28 de Fevereiro 1922 - Rio de Janeiro 1 de julho de 1991) - Foi poeta, escritor, cronista e jornalista brasileiro. Foi um dos mais talentosos escritores da geração mineira, junto com seus grandes amigos Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e outros. Como ele mesmo disse, "fui para o Rio de Janeiro para conhecer o poeta chileno Pablo Neruda, e aqui estou até hoje". Paulo foi um dos que revolucionou o estilo da crônica na imprensa e, com certeza, foi um grande poeta brasileiro.E meu grande amigo!

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domingo, 10 de maio de 2009

O teu riso, de Pablo Neruda

"Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria."

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quinta-feira, 7 de maio de 2009

Os meus versos, de Florbela Espanca

Rasga esses versos que eu te fiz, Amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde for!

Rasga-os na mente, se os souberes de cor,
Que volte ao nada o nada de um momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!...

Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente...

Rasga os meus versos... Pobre endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fosse o mesmo amor de toda a gente!...

(Reliquiae) (1931)

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