sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Nossa truculência, de Clarice Lispector

Quando penso na alegria voraz
com que comemos galinha ao molho pardo,
dou-me conta de nossa truculência.
Eu, que seria incapaz de matar uma galinha,
tanto gosto delas vivas
mexendo o pescoço feio
e procurando minhocas.
Deveríamos não comê-las e ao seu sangue?
Nunca.
Nós somos canibais,
é preciso não esquecer.
E respeitar a violência que temos.
E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo,
comeríamos gente com seu sangue.


Minha falta de coragem de matar uma galinha
e no entanto comê-la morta
me confunde, espanta-me,
mas aceito.
A nossa vida é truculenta:
nasce-se com sangue
e com sangue corta-se a união
que é o cordão umbilical.
E quantos morrem com sangue.
É preciso acreditar no sangue
como parte de nossa vida.
A truculência.
É amor também.

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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A verdade dividida, de Carlos Drummond de Andrade

A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.


(In Contos Plausíveis
José Olympio, 1985
© Graña Drummond )

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terça-feira, 20 de outubro de 2009

Minha namorada, de meus amigos Vinicius de Moraes e Carlinhos Lyra

Se você quer ser minha namorada
Ah, que linda namorada
Você poderia ser
Se quiser ser somente minha
Exatamente essa coisinha, essa coisa toda minha
Que ninguém mais pode ser...
Você tem que me fazer um juramento
De só ter um pensamento
Ser só minha até morrer...
E também de não perder esse jeitinho
De falar devagarinho
Essas histórias de você
E de repente me fazer muito carinho
E chorar bem de mansinho
Sem ninguém saber porque...
E se mais do que minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mas amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer
Você tem que vir comigo em meu caminho
E talvez o meu caminho
Seja triste pra você...
Os seus olhos tem que ser só dos meus olhos
Os seus braços o meu ninho no silêncio de depois
E você tem que ser a estrela derradeira
Minha amiga e companheira
No infinito de nós dois.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Novos casos de Amor, novos enganos, de Luís Vaz de Camões

Novos casos de Amor, novos enganos,
envoltos em lisonjas conhecidas,
do bem promessas falsas e escondidas,
onde do mal se cumprem grandes danos:

como não tomais já por desenganos
tantos ais, tantas lágrimas perdidas,
pois em a vida não basta nem mil vidas
a tantos dias tristes, tantos anos?

Um novo coração mister havia
com outros olhos menos agravados
para tornar a crer o que eu não cria.

Andais comigo, enganos, enganados;
e se o quiserdes ver, cuidai um dia
o que se diz dos bem acutilados.


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domingo, 11 de outubro de 2009

Lagrimas de sol sob o leito, de Márcia Cristina Lio Magalhães, minha amiga querida

Lágrimas de sol sob o leito
Petrificando as horas da saudade
Versos que se escondem por trás da cortina das indagações...

É meia noite
Os olhos do tempo já não vêem mais como antes
Sóbrias ilusões
Pétalas de orvalho por sobre o farol da dor...

É o fim da linha?
Na plataforma só restaram folhas sêcas
Partiu o trem...
Haverá eternidade nos sonhos das estrelas?

Cai o véu da noite
E o beijo frio da morte toca-lhe a face branca
Foi apenas sonho?
Um disco na vitrola, Son Of Alerik
Há de amanhecer outra vez
Ou jamais acordar...

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quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Para que sejamos necessários, de Bruna Lombardi

Transfere de ti para mim essa dor
de cabeça, esse desejo, essa violência.
Que careça em ti o meu excesso
e que me falte o que tu tens de sobra.

Que em mim perdure o que te morre cedo
e que te permaneça o que tenho perdido.
Que cresça, se desenvolva um teu sentido
que em mim desapareça.

Dá-me o que de possuir tu não te importas
e eu multiplico o que te falta e em mim existe
para que nosso encaixe forme uma unidade -indivisível-
que não se possa subtrair uma metade.


(in Bruna Lombardi, No ritmo dessa festa)

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sábado, 3 de outubro de 2009

Mãe, de Mário Quintana

Mãe... São três letras apenas
As desse nome bendito:
Também o Céu tem três letras...
E nelas cabe o infinito.
Para louvar nossa mãe,
Todo o bem que se disse
Nunca há de ser tão grande
Como o bem que ela nos quer...
Palavra tão pequenina,
Bem sabem os lábios meus
Que és do tamanho do Céu
E apenas menor que Deus!

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