sábado, 30 de junho de 2012

REVERÊNCIA AO DESTINO , de Carlos Drummond de Andrade





Falar é completamente fácil, quando se tem palavras em mente que expressem sua opinião.
Difícil é expressar por gestos e atitudes o que realmente queremos dizer, o quanto queremos dizer, antes que a pessoa se vá.


Fácil é julgar pessoas que estão sendo expostas pelas circunstâncias.
Difícil é encontrar e refletir sobre os seus erros, ou tentar fazer diferente algo que já fez muito errado.

Fácil é ser colega, fazer companhia a alguém, dizer o que ele deseja ouvir.
Difícil é ser amigo para todas as horas e dizer sempre a verdade quando for preciso.
E com confiança no que diz.


Fácil é analisar a situação alheia e poder aconselhar sobre esta situação.
Difícil é vivenciar esta situação e saber o que fazer ou ter coragem pra fazer.


Fácil é demonstrar raiva e impaciência quando algo o deixa irritado.
Difícil é expressar o seu amor a alguém que realmente te conhece, te respeita e te entende.
E é assim que perdemos pessoas especiais.


Fácil é mentir aos quatro ventos o que tentamos camuflar.
Difícil é mentir para o nosso coração.


Fácil é ver o que queremos enxergar.
Difícil é saber que nos iludimos com o que achávamos ter visto.
Admitir que nos deixamos levar, mais uma vez, isso é difícil.


Fácil é dizer "oi" ou "como vai?"
Difícil é dizer "adeus", principalmente quando somos culpados pela partida de alguém de nossas vidas...


Fácil é abraçar, apertar as mãos, beijar de olhos fechados.
Difícil é sentir a energia que é transmitida.
Aquela que toma conta do corpo como uma corrente elétrica quando tocamos a pessoa certa.


Fácil é querer ser amado.
Difícil é amar completamente só.
Amar de verdade, sem ter medo de viver, sem ter medo do depois. Amar e se entregar, e aprender a dar valor somente a quem te ama.


Fácil é ouvir a música que toca.
Difícil é ouvir a sua consciência, acenando o tempo todo, mostrando nossas escolhas erradas.


Fácil é ditar regras.
Difícil é seguí-las.
Ter a noção exata de nossas próprias vidas, ao invés de ter noção das vidas dos outros.


Fácil é perguntar o que deseja saber.
Difícil é estar preparado para escutar esta resposta ou querer entender a resposta.


Fácil é chorar ou sorrir quando der vontade.
Difícil é sorrir com vontade de chorar ou chorar de rir, de alegria.


Fácil é dar um beijo.
Difícil é entregar a alma, sinceramente, por inteiro.


Fácil é sair com várias pessoas ao longo da vida.
Difícil é entender que pouquíssimas delas vão te aceitar como você é e te fazer feliz por inteiro.


Fácil é ocupar um lugar na caderneta telefônica.
Difícil é ocupar o coração de alguém, saber que se é realmente amado.


Fácil é sonhar todas as noites.
Difícil é lutar por um sonho.


Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata.


("Obra Poética" , Ed. Nova Fronteira, 1988)


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sexta-feira, 29 de junho de 2012

POEMA DE SETE CHAVES, de Carlos Drummond de Andrade


Não sei quanto a vocês, mas de vez em quando, sinto necessidade de ler determinada obra! Pode ser provocado por um ou mais acontecimentos ou a simples saudade da poesia ou prosa ou um determinado momento da vida.

E olha que no meu caso, o nome até rima , mas continua não sendo uma solução...



E publico com muito prazer...alias, publicar  Drummond  é sempre muito prazeroso !

Então releiam:







Quando nasci, um anjo torto


desses que vivem na sombra


disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.






As casas espiam os homens


que correm atrás de mulheres.


A tarde talvez fosse azul,


não houvesse tantos desejos.






O bonde passa cheio de pernas:


pernas brancas pretas amarelas.


Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.


Porém meus olhos


não perguntam nada.






O homem atrás do bigode


é serio, simples e forte.


Quase não conversa.


Tem poucos, raros amigos


o homem atrás dos óculos e do bigode.






Meu Deus, por que me abandonaste


se sabias que eu não era Deus


se sabias que eu era fraco.






Mundo mundo vasto mundo,


se eu me chamasse Raimundo


seria uma rima, não seria uma solução.


Mundo mundo vasto mundo,


mais vasto é meu coração.






Eu não devia te dizer


mas essa lua


mas esse conhaque


botam a gente comovido como o diabo.






(“Alguma Poesia” , Imprensa Oficial de MG, 1930)



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quinta-feira, 28 de junho de 2012

DOIS MODOS , de Pablo Neruda






SAIBAS que não te amo e que te amo


feito de que dos dois modos é a vida,


a palavra é uma ala do silêncio,


o fogo tem uma metade de frio.



Eu te amo para começar a amar-te,


para recomeçar o infinito


e para não desejar amar-te nunca:


por isto não te amo todavia.



Te amo e não te amo como se tivera


em minhas mãos as chaves da fortuna


e um incerto destino infeliz.


Meu amor tem duas vidas para amar-te.


Por isso te amo quando não te amo


e por isso te amo quando te amo.



("Outros Poemas" , Ed. Civilização Brasileira, 1979 , pág. 11-Tradução de Ferreira Gullar)

terça-feira, 26 de junho de 2012

ACASO (?) , de Antoine de Saint-Exupéry




Cada um que passa em nossa vida,


passa sozinho, pois cada pessoa é única


e nenhuma substitui outra.


Cada um que passa em nossa vida,


passa sozinho, mas não vai só


nem nos deixa sós.


Leva um pouco de nós mesmos,


deixa um pouco de si mesmo.


Há os que levam muito,


mas há os que não levam nada.


Essa é a maior responsabilidade de nossa vida,


e a prova de que duas almas


não se encontram ao acaso.

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quinta-feira, 21 de junho de 2012

MUDE , do meu bom amigo Edson Marques



Mude, mas comece devagar, porque a direção é mais

importante que a velocidade.

Sente-se em outra cadeira, no outro lado da mesa.

Mais tarde, mude de mesa.

Quando sair, procure andar pelo outro lado da rua.

Depois, mude de caminho, ande por outras ruas,

calmamente, observando com atenção os lugares por

onde você passa.

Tome outros ônibus. Mude por uns tempos o estilo das

roupas. Dê os teus sapatos velhos. Procure andar

descalço alguns dias.

Tire uma tarde inteira para passear livremente na praia,

ou no parque, e ouvir o canto dos passarinhos.

Veja o mundo de outras perspectivas. Abra e feche as

gavetas e portas com a mão esquerda. Durma no outro lado

da cama… depois, procure dormir em outras camas.

Assista a outros programas de tv, compre outros jornais…

leia outros livros, viva outros romances.

Não faça do hábito um estilo de vida.

Ame a novidade.

Durma mais tarde.

Durma mais cedo.

Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.

Corrija a postura. Coma um pouco menos, escolha comidas

diferentes, novos temperos, novas cores, novas delícias.

Tente o novo todo dia.

o novo lado,

o novo método,

o novo sabor,

o novo jeito,

o novo prazer,

o novo amor.

a nova vida.

Tente.

Busque novos amigos.

Tente novos amores.

Faça novas relações.

Almoce em outros locais, vá a outros restaurantes,

tome outro tipo de bebida

compre pão em outra padaria.

Almoce mais cedo, jante mais tarde ou vice-versa.

Escolha outro mercado… outra marca de sabonete,

outro creme dental… tome banho em novos horários.

Use canetas de outras cores.

Vá passear em outros lugares.

Ame muito, cada vez mais, de modos diferentes.

Troque de bolsa, de carteira, de malas, troque de carro,

compre novos óculos, escreva outras poesias.

Jogue os velhos relógios, quebre delicadamente esses

horrorosos despertadores.

Vá a outros cinemas, outros cabeleireiros,

outros teatros, visite novos museus.

Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as.

Seja criativo. E aproveite para fazer uma viagem

despretensiosa, longa, se possível sem destino.

Experimente coisas novas.

Troque novamente.

Mude, de novo.

Experimente outra vez.

Você certamente conhecerá coisas melhores e coisas

piores do que as já conhecidas, mas não é isso o que importa.

O mais importante é a mudança,

o movimento,

o dinamismo,

a energia.

Só o que está morto não muda !

Repito por pura alegria de viver:

a salvação é pelo risco, sem o qual a vida

Só o que está morto não muda!





(O Edson deixa claro que ele pretendeu escrever baseado na idéia da

Clarice. Portanto fique esclarecido.)

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quarta-feira, 20 de junho de 2012

O TEMPO, de Mário Quintana



A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal...
Quando se vê, já terminou o ano...

Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado...

Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas...

Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo...

E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.

A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.

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terça-feira, 19 de junho de 2012

POEMA DA AMIGA , de Mário de Andrade



A tarde se deitava nos meus olhos
E a fuga da hora me entregava abril,
Um sabor familiar de até-logo criava
Um ar, e, não sei porque, te percebi.


Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.
Estavas longe doce amiga e só vi no perfil da cidade
O arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa,
Mexendo asas azuis dentro da tarde.


Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus amigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.


Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.


No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.


Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia
Sereia.


O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...


Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...


As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

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segunda-feira, 18 de junho de 2012

DESPEDIDA , de Cecilia Meireles



Por mim, e por vós, e por mais aquilo

que está onde as outras coisas nunca estão

deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:

quero solidão.



Meu caminho é sem marcos nem paisagens.

E como o conheces ? – me perguntarão.

- Por não ter palavras, por não ter imagens.

Nenhum inimigo e nenhum irmão.



Que procuras ? Tudo. Que desejas ? – Nada.

Viajo sozinha com o meu coração.

Não ando perdida, mas desencontrada.

Levo o meu rumo na minha mão.



A memória voou da minha fronte.

Voou meu amor, minha imaginação…

Talvez eu morra antes do horizonte.

Memória, amor e o resto onde estarão?



Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.

(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão !

Estandarte triste de uma estranha guerra…)

Quero solidão.





(in "Obra Poética", Ed. Nova Fronteira, 1988, pág. 34)


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domingo, 17 de junho de 2012

OS PODERES INFERNAIS , de Carlos Drummond de Andrade




O meu amor faísca na medula,

pois que na superfície ele anoitece.

Abre na escuridão sua quermesse.

É todo fome, e eis que repele a gula.



Sua escama de fel nunca se anula

e seu rangido nada tem de prece.

Uma aranha invisível é que o tece.

O meu amor, paralisado, pula.



Pulula, ulula. Salve, lobo triste!

Quando eu secar, ele estará vivendo,

já não vive de mim, nele é que existe



o que sou, o que sobro, esmigalhado.

O meu amor é tudo que, morrendo,

não morre todo, e fica no ar, parado.





(in OBRA COMPLETA, ED. AGUILAR, 1964, PAG. 321)


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sábado, 16 de junho de 2012

CERTEZAS , de Adriana Brito



Não quero alguém que morra de amor por mim…
Só preciso de alguém que viva por mim, que queira estar junto de mim, me abraçando.
Não exijo que esse alguém me ame como eu o amo,
quero apenas que me ame, não me importando com que intensidade.

Não tenho a pretensão de que todas as pessoas quem gosto, gostem de mim…
Nem que eu faça a falta que elas me fazem, o importante pra mim é saber que eu, em algum momento, fui insubstituível…

E que esse momento será inesquecível..

Só quero que meu sentimento seja valorizado.
Quero sempre poder ter um sorriso estampando em meu rosto, mesmo quando a situação não for muito alegre…
E que esse meu sorriso consiga transmitir paz para os que estiverem ao meu redor.
Quero poder fechar meus olhos e imaginar alguém…
e poder ter a absoluta certeza de que esse alguém também pensa em mim quando fecha os olhos, que faço falta quando não estou por perto.

Queria ter a certeza de que apesar de minhas renúncias e loucuras,
alguém me valoriza pelo que sou, não pelo que tenho…
Que me veja como um ser humano completo, que abusa demais dos bons
sentimentos que a vida lhe proporciona, que dê valor ao que realmente
importa, que é meu sentimento… e não brinque com ele.

E que esse alguém me peça para que eu nunca mude, para que eu nunca cresça, para que eu seja sempre eu mesmo.
Não quero brigar com o mundo, mas se um dia isso acontecer, quero ter forças suficientes para mostrar a ele que o amor existe…
Que ele é superior ao ódio e ao rancor, e que não existe vitória sem humildade e paz.

Quero poder acreditar que mesmo se hoje eu fracassar, amanhã será outro dia, e se eu não desistir dos meus sonhos e propósitos, talvez obtenha êxito e serei plenamente feliz.
Que eu nunca deixe minha esperança ser abalada por palavras pessimistas…
Que a esperança nunca me pareça um “não” que a gente teima em maquiá-lo de verde e entendê-lo como “sim”.

Quero poder ter a liberdade de dizer o que sinto a uma pessoa, de poder dizer a alguém o quanto ela é especial e importante pra mim, sem ter de me preocupar com terceiros…
Sem correr o risco de ferir uma ou mais pessoas com esse sentimento.

Quero, um dia, poder dizer às pessoas que nada foi em vão…
Que o amor existe, que vale a pena se doar às amizades e às pessoas,
que a vida é bela sim, e que eu sempre dei o melhor de mim…
e que valeu a pena.

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sexta-feira, 15 de junho de 2012

PASSA UMA BORBOLETA , de Fernando Pessoa




Passa uma borboleta por diante de mim

E pela primeira vez no Universo eu reparo

Que as borboletas não têm cor nem movimento,

Assim como as flores não têm perfume nem cor.

A cor é que tem cor nas asas da borboleta,

No movimento da borboleta o movimento é que se move,

O perfume é que tem perfume no perfume da flor.

A borboleta é apenas borboleta

E a flor é apenas flor.


(in "Obra Completa" , "Guardador de Rebanhos" como Alberto Caeiro, Ed. Aguilar, 1960)

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terça-feira, 12 de junho de 2012

A NOSSA VITÓRIA DE CADA DIA , de Clarice Lispector

(Nota do blogueiro, atrevido: esse trecho , "Luminescência", no diálogo entre Ulysses e Lori é essencial para que se avalie a obra da Clarice ! Desculpem-me a pretensão .)


Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.


Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe.

Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingenuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.



( Extraído do livro 'Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres" , Ed. Rocco, 1998)

segunda-feira, 11 de junho de 2012

TIMIDEZ , de Cecilia Meireles



Basta-me um pequeno gesto,

feito de longe e de leve,

para que venhas comigo

e eu para sempre te leve...

- mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída

das montanhas dos instantes

desmancha todos os mares

e une as terras mais distantes...

- palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,

entre os ventos taciturnos,

apago meus pensamentos,

ponho vestidos noturnos,

- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,

os mundos vão navegando

nos ares certos do tempo,

até não se sabe quando...

e um dia me acabarei.




("Poesias de Cecilia Meireles" , Ed. Nova Fronteira , 1999)





domingo, 10 de junho de 2012

É ASSIM QUE TE QUERO , de Pablo Neruda



É assim que te quero, amor,

assim, amor, é que eu gosto de ti,

tal como te vestes

e como arranjas

os cabelos e como

a tua boca sorri,

ágil como a água

da fonte sobre as pedras puras,

é assim que te quero, amada,

Ao pão não peço que me ensine,

mas antes que não me falte

em cada dia que passa.

Da luz nada sei, nem donde

vem nem para onde vai,

apenas quero que a luz alumie,

e também não peço à noite explicações,

espero-a e envolve-me,

e assim tu pão e luz

e sombra és.

Chegastes à minha vida

com o que trazias,

feita

de luz e pão e sombra, eu te esperava,

e é assim que preciso de ti,

assim que te amo,

e os que amanhã quiserem ouvir

o que não lhes direi, que o leiam aqui

e retrocedam hoje porque é cedo

para tais argumentos.

Amanhã dar-lhes-emos apenas

uma folha da árvore do nosso amor, uma folha

que há de cair sobre a terra

como se a tivessem produzido os nosso lábios,

como um beijo caído

das nossas alturas invencíveis

para mostrar o fogo e a ternura

de um amor verdadeiro.
 
 
("Poemas Avulsos" , Ed. Civilização Brasileira , 1981)

sábado, 9 de junho de 2012

Sossega Coração, de Fenando Pessoa



Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperença a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.


(Fernando Pessoa, 2-8-1933, in "Obra Completa", Poética" , Ed. Aguilar, 1960, pág. 423)

quinta-feira, 7 de junho de 2012

O TEMPO PASSA ? NÃO PASSA , de Carlos Drummond de Andrade


O tempo passa ? Não passa

no abismo do coração.

Lá dentro, perdura a graça

do amor, florindo em canção.



O tempo nos aproxima

cada vez mais, nos reduz

a um só verso e uma rima

de mãos e olhos, na luz.



Não há tempo consumido

nem tempo a economizar.

O tempo é todo vestido

de amor e tempo de amar.



O meu tempo e o teu, amada,

transcendem qualquer medida.

Além do amor, não há nada,

amar é o sumo da vida.



São mitos de calendário

tanto o ontem como o agora,

e o teu aniversário

é um nascer a toda hora.



E nosso amor, que brotou

do tempo, não tem idade,

pois só quem ama escutou

o apelo da eternidade.
 
 
("Poemas" , Ed. Objetiva , 1998  , pág. 57)

quarta-feira, 6 de junho de 2012

POR QUEM FOI..., de Fernando Pessoa




Por quem foi que me trocaram

Quando estava a olhar pra ti?

Pousa a tua mão na minha cabeça

e, sem me olhares, sorri.

Sorri do teu pensamento

Porque eu só quero pensar

Que é de mim que ele está feito

É que tens para mo dar.



Depois aperta-me a mão

E vira os olhos a mim...

Por quem foi que me trocaram

Quando estás a olhar-me assim?






(in "Obra Completa", Ed. Aguilar 1960, pág. 342)



terça-feira, 5 de junho de 2012

Cartas a um jovem poeta (Primeira carta), de Rainier Maria Rilke




" Paris, 17 de Fevereiro de 1903


Prezadíssimo Senhor,

Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, - seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.

Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição própria somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto com maior clareza no último poema, "Minha Alma". Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No belo poema "A Leopardi" talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário esteja apontando. No entanto, as poesias nada têm ainda de próprio e de independente, nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompanha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos, sem que a pudesse definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem - usando da licença que me deu de aconselhá-lo - peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, - ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite:"Sou mesmo forçado a escrever?" Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usuais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate tudo isso com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de suas lembranças. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, essa esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas desse longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre lusco e fusco diante da qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, - o único existente. Também, meu prezado senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra a sua vida; na fonte desta é que encontrará a resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha significar que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceite o destino e carregue-o com seu peso e sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.

Mas talvez se dê o caso de, após essa descida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o senhor de renunciar a se tornar poeta.

(Basta, como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.

Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa.

Foi com alegria que encontrei em sua carta o nome do professor Hoaracek; guardo por esse amável sábio uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, neste sentimento. É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la.

Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.

Com todo o devotamento e toda a simpatia,

Rainer Maria Rilke"



(Esta Primeira Carta do livro "Cartas a um jovem poeta",
foi traduzida por Cecília Meireles, retirados da edição :
"Cartas a um jovem poeta e Canção de Amor e morte
do porta-estandarte Cristovão Rilke", Editora Globo, 1983.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER , de Luís de Camões


Amor é fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer;



É um não querer mais que bem querer;

É solitário andar por entre a gente;

É nunca contentar-se de contente;

É cuidar que se ganha em se perder;



É querer estar preso por vontade;

É servir a quem vence, o vencedor;

É ter com quem nos mata lealdade.



Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?



(Ler mais: http://www.luso-poemas.net/

domingo, 3 de junho de 2012

AS LENTAS NUVENS FAZEM SONO , de Fernando Pessoa




As lentas nuvens fazem sono,

O céu azul faz bom dormir.

Bóio, num íntimo abandono,

À tona de me não sentir.



E é suave, como um correr de água,

O sentir que não sou alguém,

Não sou capaz de peso ou mágoa.

Minha alma é aquilo que não tem.



Que bom, à margem do ribeiro

Saber que é ele que vai indo...

E só em sono eu vou primeiro.

E só em sonho eu vou seguindo.


("Poemas Inéditos" , "Obra Completa" , Ed. Aguilar, 1960 , pág. 367)





sábado, 2 de junho de 2012

SOLIDÃO , de minha querida amiga Marcia Magalhães (Poetar è Preciso)



Pois que te fere a ausência dos meus beijos


A sombra morta dos rochedos de outrora


Que sobreposta amarguras e desprezo


Do céu sem nuvens, onde imperam raios negros




O sol levanta taciturno andarilho


Por entre deuses, rocha, vento, asas de prata


Pois que o silêncio, fere, ágil, traiçoeiro


Desfolha em pétalas os nós desta mordaça!



Porém vagueis pelos caminhos do oculto


Nos labirintos onde a morte vos espreita


Buscais a chave do destino com astúcia


Devolve a taça com cicuta a quem lhe oferta!



Segue teus passos, ouve baixinho o coração


Que num murmúrio, a ti decifras o caminho


Vagueis sozinho, aprisionado à solidão


Olhai o céu! Não te abandonam as estrelas...




(Blog Poetar É Preciso , relacionado como um dos meus prediletos, junto com o Blog do Universo aqui ao lado, é mineira como o Universo e eu)


sexta-feira, 1 de junho de 2012

PASSEI TODA A NOITE , de Fernando Pessoa




Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,


E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.


Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,


E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.


Amar é pensar.


E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.


Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.


Tenho uma grande distracção animada.


Quando desejo encontrá-la


Quase que prefiro não a encontrar,


Para não ter que a deixar depois.


Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só Pensar nela.


Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.






(”O Guardador de Rebanhos”, “Obra Completa”, Ed. Aguilar, 1960, pág. 312.)