Munch
Que faço deste dia, que me adora?
Pega-lo pela cauda, antes da hora
Vermelha de furtar-se ao meu festim?
Ou colocá-lo em música, em palavra,
Ou grava-lo na pedra, que o sol lavra?
Força é guardá-lo em mim, que um dia assim
Tremenda noite deixa se ela ao leito
Da noite precedente o leva, feito
Escravo dessa fêmea a quem fugira
Por mim, por minha voz e minha lira.
(Mas já se sombras vejo que se cobre
Tão surdo ao sonho de ficar – tão nobre.
Já nele a luz da lua – a morte – mora,
De traição foi feito: vai-se embora.)
.
Pretendo com este modesto blog compartilhar com os amigos as minhas algumas criações e estimular a leitura de grandes obras de arte, comentários sobre museus e viagens, restaurantes e uma série de coisas boas. Garanto que você vai gostar, mais ou menos, mas vai !
domingo, 27 de setembro de 2009
sexta-feira, 25 de setembro de 2009
Retrato de uma londrina, ultimo texto de Virginia Woolf
Ninguém pode se considerar expert sobre Londres se não conhecer um verdadeiro cockney¹; se não dobrar numa rua lateral, longe das lojas e dos teatros, e bater em uma porta particular numa rua de casas particulares.
Casas particulares em Londres têm tendência a serem muito parecidas. A porta se abre para um vestíbulo escuro, ergue-se uma escada estreita; do patamar superior abre-se uma dupla sala de estar e nessa dupla sala de estar vê-se dois sofás, um de cada lado de um fogo crepitante, seis poltronas e três compridas janelas dando para a rua. Sempre é matéria de considerável conjectura o que acontece na segunda metade da sala dos fundos debruçando-se para os jardins de outras casas. Mas é com a sala de estar da frente que estamos preocupados; pois era ali que mrs. Crowe sentava-se sempre numa poltrona junto ao fogo; era ali que sua existência transcorria; era ali que ela servia o chá.
Que tenha nascido no campo, embora estranho, parece ser um fato; que ela às vezes deixasse a cidade, naquelas semanas de verão em que Londres não é Londres, também é verdade. Mas para onde ia ou o que fazia quando saía de Londres, quando sua poltrona estava vazia, sua lareira apagada e a mesa desfeita, ninguém sabia ou podia imaginar. Pois conceber mrs. Crowe com seu vestido preto, seu véu e seu chapéu caminhando num campo de nabos ou subindo um monte de pasto está além da mais desvairada imaginação.
Ali, junto à lareira no inverno ou à janela no verão, sentara-se ela por 60 anos — mas não sozinha. Havia sempre alguém na poltrona oposta, fazendo uma visita. E antes que o primeiro visitante estivesse sentado por dez minutos, a porta sempre se abria e a criada Maria, de olhos e dentes proeminentes, que por 60 anos abrira a porta, abria-a mais uma vez e anunciava um segundo visitante; e a seguir um terceiro, e logo depois um quarto.
Nunca se soube de um tête-à-tête com mrs. Crowe. Ela não gostava de tête-à-têtes. Era uma peculiaridade que compartilhava com muitas anfitriãs, a de nunca ser especialmente íntima de alguém. Por exemplo, havia sempre um homem idoso no canto junto ao armário; e que parecia tanto fazer parte daquela admirável mobília do século XVIII quanto seus pegadores de bronze. Mas mrs. Crowe sempre se dirigia a ele como mr. Graham; nunca John, nunca William; embora, às vezes, o chamasse de "caro mr. Graham" como para sublinhar que já o conhecia havia 60 anos.
A verdade é que não desejava intimidade, desejava conversa. A intimidade é um dos caminhos para o silêncio, e mrs. Crowe abominava o silêncio. Era preciso haver conversa, e que esta fosse geral e que abarcasse tudo. Não devia ser profunda demais nem inteligente demais, pois se progredisse muito nessas direções alguém certamente se sentiria de fora, e ficaria sentado ali, balançando a xícara de chá, sem dizer nada.
Portanto, a sala de estar de mrs. Crowe tinha pouco em comum com os celebrados salões dos memorialistas. Gente inteligente ia lá com freqüência — juízes, médicos, membros do parlamento, escritores, músicos, viajantes, jogadores de pólo, atores e completos anônimos —, mas se alguém dissesse uma coisa brilhante isto era sentido quase como uma gafe, um acidente que se ignorava, como um acesso de espirros ou alguma catástrofe com um bolinho. A conversa de que mrs. Crowe gostava e que a inspirava era uma versão glorificada do mexerico da cidade. A cidade era Londres, e o mexerico era sobre a vida de Londres. Mas o grande dom de mrs. Crowe consistia em tornar a grande metrópole tão pequena quanto uma aldeia, com uma igreja, um solar e 25 chalés. Mrs. Crowe tinha informação de primeira mão sobre cada peça, cada exposição de pintura, cada julgamento, cada caso de divórcio. Ela sabia quem estava casando, quem estava morrendo, quem estava na cidade e quem estava fora. Ela mencionava o fato de que acabara de ver o carro de lady Umphleby passar, e arriscava o palpite de que ia visitar a filha cujo bebê nascera na noite anterior, exatamente como uma mulher da aldeia fala sobre a esposa do juiz de paz dirigindo até a estação para receber mr. John, que estaria voltando da cidade.
E enquanto mrs. Crowe fazia essas observações pelos últimos 50 anos ou algo assim, adquiria um surpreendente arquivo sobre a vida de outras pessoas. Quando mr. Smedley, por exemplo, disse que sua filha estava noiva de Arthur Beecham, mrs. Crowe observou imediatamente que nesse caso ela seria uma prima em terceiro grau de mrs. Pirebrace, e num certo sentido sobrinha de mrs. Burns, pelo primeiro casamento com mr. Minchin de Blackwater Grange. Mas mrs. Crowe não era nem um pouco esnobe. Era apenas uma cultivadora de relações; e sua surpreendente habilidade nesse campo servia para dar um caráter familiar e uma personalidade doméstica às suas colheitas, pois muitas pessoas se espantariam de serem primos em vigésimo grau, se soubessem disso.
Portanto, ser admitido na casa de mrs. Crowe significava tornar-se membro de um clube, e o pagamento exigido era a contribuição com um número de tópicos de mexerico por ano. O primeiro pensamento de muita gente quando a casa incendiava ou os canos rebentavam ou a criada fugia com o mordomo deve ter sido: "Vou correr até mrs. Crowe e lhe contar isso." Mas nisso também as distinções precisavam ser observadas. Certas pessoas tinham o direito de aparecer na hora do almoço; outras, em maior número, podiam ir entre cinco e sete horas. A classe que tinha o privilégio de jantar com mrs. Crowe era pequena. Talvez somente mr. Graham e mrs. Burke realmente jantassem com ela, pois mrs. Crowe não era rica. Seu vestido preto estava um tantinho gasto; seu broche de diamante era sempre o mesmo broche de diamante. Sua refeição favorita era chá, porque a mesa do chá pode ser suprida economicamente, e há uma elasticidade no chá que combinava com o temperamento gregário de mrs. Crowe. Mas fosse almoço ou chá, a refeição mostrava um caráter distinto, exatamente como um vestido ou a jóia que usava combinavam com ela à perfeição, traziam em si uma moda própria. Haveria um bolo especial, um pudim especial, algo peculiar à casa e tanto parte dela quanto Maria, a velha criada, ou mr. Graham, o velho amigo, ou o velho chintz da poltrona, ou o velho carpete no assoalho.
É verdade que mrs. Crowe deve ter saído algumas vezes, convidada para almoços e chás de outras pessoas. Mas em sociedade ela parecia furtiva, fragmentária e incompleta, como se tivesse meramente passado para uma espiada no casamento ou na reunião noturna ou no funeral, a fim de recolher as migalhas de notícias de que precisava para completar seu próprio estoque. Por isso, era raramente induzida a sentar-se; estava sempre voando. Parecia deslocada entre as mesas e cadeiras dos outros; precisava ter seus próprios chintzes, seu próprio armário e seu próprio mr. Graham junto a ele a fim de ser completamente ela própria. À medida que os anos foram passando, as pequenas incursões no mundo exterior praticamente cessaram. Mrs. Crowe construiu seu ninho de modo tão compacto e completo que o mundo exterior não tinha uma pena ou um graveto a lhe acrescentar. Além disso, seus próprios camaradas lhe eram tão fiéis que podia confiar neles para transmitir qualquer noticiazinha que ela devesse acrescentar à sua coleção. Era desnecessário que abandonasse a própria poltrona junto ao fogo no inverno, ou junto à janela no verão. E com a passagem dos anos seu conhecimento não se tornou mais profundo — a profundidade não era a linha de nossa anfitriã — e sim mais redondo e completo. Deste modo, se uma nova peça fazia um grande sucesso, mrs. Crowe conseguia no dia seguinte não só registrar o fato com uma pitada de mexerico divertido dos bastidores, como também podia remeter-se a outras estréias, nos anos 1880, 1890, e descrever o que Ellen Terry usara, o que Duse tinha feito, o que o querido mr. Henry James comentara — nada muito notável talvez; mas enquanto falava, era como se todas as páginas da vida de Londres nos últimos 50 anos fossem levemente folheadas para sua diversão. Havia muitas, e suas ilustrações eram vivas e brilhantes, e de pessoas famosas; mas mrs. Crowe de modo nenhum vivia no passado, de modo nenhum o exaltava acima do presente.
Na verdade, era sempre a última página, o momento presente que mais importava. O delicioso de Londres era que sempre dava ao indivíduo algo novo para observar, algo fresco sobre o que falar. Era preciso apenas manter os olhos abertos e sentar em sua própria poltrona das cinco às sete horas todos os dias da semana. Enquanto mrs. Crowe sentava-se com os convidados em torno de si, dava de tempos em tempos uma rápida olhadela de pássaro por sobre o ombro para a janela, como se tivesse meio olho na rua, meio ouvido para os carros e ônibus e os gritos dos jornaleiros lá fora. Ora, algo novo podia estar acontecendo naquele mesmo instante. Não se podia passar tempo demais no passado: não se devia dar uma atenção total ao presente.
Nada era mais característico e talvez um pouco desconcertante do que a ansiedade com a qual mrs. Crowe erguia os olhos e interrompia a frase no meio quando a porta sempre se abria e Maria, que se tornara muito corpulenta e um pouco surda, anunciava uma nova visita. Quem estaria prestes a entrar? O que teria a acrescenta à conversa? Mas sua habilidade em extrair fosse o que fosse que poderiam oferecer e sua destreza em atirar a notícia no cotidiano, eram tais que nenhum dano ocorria; e fazia parte de seu peculiar triunfo que a porta jamais se abrisse com demasiada freqüência; o círculo nunca ultrapassava sua possibilidade de controle.
Assim, para conhecer Londres não apenas como um espetáculo deslumbrante, um mercado, uma corte, uma colméia de indústria, mas como um lugar onde pessoas se encontram, conversam, riem, casam-se e morrem, pintam, escrevem e atuam, mandam e legislam, era essencial conhecer mrs. Crowe. Era em sua sala de estar que os inúmeros fragmentos da vasta metrópole pareciam juntar-se num todo animado, compreensível, divertido e agradável. Viajantes ausentes por anos, homens esgotados e ressecados pelo sol, recém-chegados da Índia ou da África, de remotas viagens e aventuras entre selvagens e tigres, iam direto para a casinha na rua quieta para serem conduzidos novamente ao coração da civilização numa única pernada. Mas nem a própria Londres podia manter mrs. Crowe viva para sempre. E é fato que um dia ela já não estava sentada na poltrona junto ao fogo quando o relógio bateu cinco horas; Maria não abriu a porta; mr. Graham separara-se do armário. Mrs. Crowe está morta; e Londres, embora Londres ainda exista, jamais será de novo a mesma cidade.
¹Cockney: nativo de Londres, especialmente do East End, ou falante de seu dialeto. (N. da T.)
Virginia Adeline Stephen Woolf nasceu em Londres, Inglaterra, em 1882.
.
Casas particulares em Londres têm tendência a serem muito parecidas. A porta se abre para um vestíbulo escuro, ergue-se uma escada estreita; do patamar superior abre-se uma dupla sala de estar e nessa dupla sala de estar vê-se dois sofás, um de cada lado de um fogo crepitante, seis poltronas e três compridas janelas dando para a rua. Sempre é matéria de considerável conjectura o que acontece na segunda metade da sala dos fundos debruçando-se para os jardins de outras casas. Mas é com a sala de estar da frente que estamos preocupados; pois era ali que mrs. Crowe sentava-se sempre numa poltrona junto ao fogo; era ali que sua existência transcorria; era ali que ela servia o chá.
Que tenha nascido no campo, embora estranho, parece ser um fato; que ela às vezes deixasse a cidade, naquelas semanas de verão em que Londres não é Londres, também é verdade. Mas para onde ia ou o que fazia quando saía de Londres, quando sua poltrona estava vazia, sua lareira apagada e a mesa desfeita, ninguém sabia ou podia imaginar. Pois conceber mrs. Crowe com seu vestido preto, seu véu e seu chapéu caminhando num campo de nabos ou subindo um monte de pasto está além da mais desvairada imaginação.
Ali, junto à lareira no inverno ou à janela no verão, sentara-se ela por 60 anos — mas não sozinha. Havia sempre alguém na poltrona oposta, fazendo uma visita. E antes que o primeiro visitante estivesse sentado por dez minutos, a porta sempre se abria e a criada Maria, de olhos e dentes proeminentes, que por 60 anos abrira a porta, abria-a mais uma vez e anunciava um segundo visitante; e a seguir um terceiro, e logo depois um quarto.
Nunca se soube de um tête-à-tête com mrs. Crowe. Ela não gostava de tête-à-têtes. Era uma peculiaridade que compartilhava com muitas anfitriãs, a de nunca ser especialmente íntima de alguém. Por exemplo, havia sempre um homem idoso no canto junto ao armário; e que parecia tanto fazer parte daquela admirável mobília do século XVIII quanto seus pegadores de bronze. Mas mrs. Crowe sempre se dirigia a ele como mr. Graham; nunca John, nunca William; embora, às vezes, o chamasse de "caro mr. Graham" como para sublinhar que já o conhecia havia 60 anos.
A verdade é que não desejava intimidade, desejava conversa. A intimidade é um dos caminhos para o silêncio, e mrs. Crowe abominava o silêncio. Era preciso haver conversa, e que esta fosse geral e que abarcasse tudo. Não devia ser profunda demais nem inteligente demais, pois se progredisse muito nessas direções alguém certamente se sentiria de fora, e ficaria sentado ali, balançando a xícara de chá, sem dizer nada.
Portanto, a sala de estar de mrs. Crowe tinha pouco em comum com os celebrados salões dos memorialistas. Gente inteligente ia lá com freqüência — juízes, médicos, membros do parlamento, escritores, músicos, viajantes, jogadores de pólo, atores e completos anônimos —, mas se alguém dissesse uma coisa brilhante isto era sentido quase como uma gafe, um acidente que se ignorava, como um acesso de espirros ou alguma catástrofe com um bolinho. A conversa de que mrs. Crowe gostava e que a inspirava era uma versão glorificada do mexerico da cidade. A cidade era Londres, e o mexerico era sobre a vida de Londres. Mas o grande dom de mrs. Crowe consistia em tornar a grande metrópole tão pequena quanto uma aldeia, com uma igreja, um solar e 25 chalés. Mrs. Crowe tinha informação de primeira mão sobre cada peça, cada exposição de pintura, cada julgamento, cada caso de divórcio. Ela sabia quem estava casando, quem estava morrendo, quem estava na cidade e quem estava fora. Ela mencionava o fato de que acabara de ver o carro de lady Umphleby passar, e arriscava o palpite de que ia visitar a filha cujo bebê nascera na noite anterior, exatamente como uma mulher da aldeia fala sobre a esposa do juiz de paz dirigindo até a estação para receber mr. John, que estaria voltando da cidade.
E enquanto mrs. Crowe fazia essas observações pelos últimos 50 anos ou algo assim, adquiria um surpreendente arquivo sobre a vida de outras pessoas. Quando mr. Smedley, por exemplo, disse que sua filha estava noiva de Arthur Beecham, mrs. Crowe observou imediatamente que nesse caso ela seria uma prima em terceiro grau de mrs. Pirebrace, e num certo sentido sobrinha de mrs. Burns, pelo primeiro casamento com mr. Minchin de Blackwater Grange. Mas mrs. Crowe não era nem um pouco esnobe. Era apenas uma cultivadora de relações; e sua surpreendente habilidade nesse campo servia para dar um caráter familiar e uma personalidade doméstica às suas colheitas, pois muitas pessoas se espantariam de serem primos em vigésimo grau, se soubessem disso.
Portanto, ser admitido na casa de mrs. Crowe significava tornar-se membro de um clube, e o pagamento exigido era a contribuição com um número de tópicos de mexerico por ano. O primeiro pensamento de muita gente quando a casa incendiava ou os canos rebentavam ou a criada fugia com o mordomo deve ter sido: "Vou correr até mrs. Crowe e lhe contar isso." Mas nisso também as distinções precisavam ser observadas. Certas pessoas tinham o direito de aparecer na hora do almoço; outras, em maior número, podiam ir entre cinco e sete horas. A classe que tinha o privilégio de jantar com mrs. Crowe era pequena. Talvez somente mr. Graham e mrs. Burke realmente jantassem com ela, pois mrs. Crowe não era rica. Seu vestido preto estava um tantinho gasto; seu broche de diamante era sempre o mesmo broche de diamante. Sua refeição favorita era chá, porque a mesa do chá pode ser suprida economicamente, e há uma elasticidade no chá que combinava com o temperamento gregário de mrs. Crowe. Mas fosse almoço ou chá, a refeição mostrava um caráter distinto, exatamente como um vestido ou a jóia que usava combinavam com ela à perfeição, traziam em si uma moda própria. Haveria um bolo especial, um pudim especial, algo peculiar à casa e tanto parte dela quanto Maria, a velha criada, ou mr. Graham, o velho amigo, ou o velho chintz da poltrona, ou o velho carpete no assoalho.
É verdade que mrs. Crowe deve ter saído algumas vezes, convidada para almoços e chás de outras pessoas. Mas em sociedade ela parecia furtiva, fragmentária e incompleta, como se tivesse meramente passado para uma espiada no casamento ou na reunião noturna ou no funeral, a fim de recolher as migalhas de notícias de que precisava para completar seu próprio estoque. Por isso, era raramente induzida a sentar-se; estava sempre voando. Parecia deslocada entre as mesas e cadeiras dos outros; precisava ter seus próprios chintzes, seu próprio armário e seu próprio mr. Graham junto a ele a fim de ser completamente ela própria. À medida que os anos foram passando, as pequenas incursões no mundo exterior praticamente cessaram. Mrs. Crowe construiu seu ninho de modo tão compacto e completo que o mundo exterior não tinha uma pena ou um graveto a lhe acrescentar. Além disso, seus próprios camaradas lhe eram tão fiéis que podia confiar neles para transmitir qualquer noticiazinha que ela devesse acrescentar à sua coleção. Era desnecessário que abandonasse a própria poltrona junto ao fogo no inverno, ou junto à janela no verão. E com a passagem dos anos seu conhecimento não se tornou mais profundo — a profundidade não era a linha de nossa anfitriã — e sim mais redondo e completo. Deste modo, se uma nova peça fazia um grande sucesso, mrs. Crowe conseguia no dia seguinte não só registrar o fato com uma pitada de mexerico divertido dos bastidores, como também podia remeter-se a outras estréias, nos anos 1880, 1890, e descrever o que Ellen Terry usara, o que Duse tinha feito, o que o querido mr. Henry James comentara — nada muito notável talvez; mas enquanto falava, era como se todas as páginas da vida de Londres nos últimos 50 anos fossem levemente folheadas para sua diversão. Havia muitas, e suas ilustrações eram vivas e brilhantes, e de pessoas famosas; mas mrs. Crowe de modo nenhum vivia no passado, de modo nenhum o exaltava acima do presente.
Na verdade, era sempre a última página, o momento presente que mais importava. O delicioso de Londres era que sempre dava ao indivíduo algo novo para observar, algo fresco sobre o que falar. Era preciso apenas manter os olhos abertos e sentar em sua própria poltrona das cinco às sete horas todos os dias da semana. Enquanto mrs. Crowe sentava-se com os convidados em torno de si, dava de tempos em tempos uma rápida olhadela de pássaro por sobre o ombro para a janela, como se tivesse meio olho na rua, meio ouvido para os carros e ônibus e os gritos dos jornaleiros lá fora. Ora, algo novo podia estar acontecendo naquele mesmo instante. Não se podia passar tempo demais no passado: não se devia dar uma atenção total ao presente.
Nada era mais característico e talvez um pouco desconcertante do que a ansiedade com a qual mrs. Crowe erguia os olhos e interrompia a frase no meio quando a porta sempre se abria e Maria, que se tornara muito corpulenta e um pouco surda, anunciava uma nova visita. Quem estaria prestes a entrar? O que teria a acrescenta à conversa? Mas sua habilidade em extrair fosse o que fosse que poderiam oferecer e sua destreza em atirar a notícia no cotidiano, eram tais que nenhum dano ocorria; e fazia parte de seu peculiar triunfo que a porta jamais se abrisse com demasiada freqüência; o círculo nunca ultrapassava sua possibilidade de controle.
Assim, para conhecer Londres não apenas como um espetáculo deslumbrante, um mercado, uma corte, uma colméia de indústria, mas como um lugar onde pessoas se encontram, conversam, riem, casam-se e morrem, pintam, escrevem e atuam, mandam e legislam, era essencial conhecer mrs. Crowe. Era em sua sala de estar que os inúmeros fragmentos da vasta metrópole pareciam juntar-se num todo animado, compreensível, divertido e agradável. Viajantes ausentes por anos, homens esgotados e ressecados pelo sol, recém-chegados da Índia ou da África, de remotas viagens e aventuras entre selvagens e tigres, iam direto para a casinha na rua quieta para serem conduzidos novamente ao coração da civilização numa única pernada. Mas nem a própria Londres podia manter mrs. Crowe viva para sempre. E é fato que um dia ela já não estava sentada na poltrona junto ao fogo quando o relógio bateu cinco horas; Maria não abriu a porta; mr. Graham separara-se do armário. Mrs. Crowe está morta; e Londres, embora Londres ainda exista, jamais será de novo a mesma cidade.
¹Cockney: nativo de Londres, especialmente do East End, ou falante de seu dialeto. (N. da T.)
Virginia Adeline Stephen Woolf nasceu em Londres, Inglaterra, em 1882.
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quarta-feira, 23 de setembro de 2009
O Velho e o Novo, de Taiguara
Deixa o velho em paz
Com as suas histórias de um tempo bom
Quanto bem lhe faz
Murmurar memórias num mesmo tom
A sua cantiga, revive a vida
Que já se esvai
Uma velha amiga, outra velha intriga
E um dia a mais
Vão nascendo as rugas
Morrendo as fugas a as ilusões
Tateando as pregas
Se deixa entregue às recordações
Em seu dorso farto
Carrega o fardo de caracol
Mas espera atento
Que o céu cinzento lhe traga o sol
Ele sabe o mundo
O saber profundo de quem se vai
O que não faria
Pudesse um dia voltar atrás
Range o velho barco
Lamento amargo do que não fez
E o futuro espelha
Esse mesmo velho que são vocês
Obrigado e parabéns Meninas!
.
Com as suas histórias de um tempo bom
Quanto bem lhe faz
Murmurar memórias num mesmo tom
A sua cantiga, revive a vida
Que já se esvai
Uma velha amiga, outra velha intriga
E um dia a mais
Vão nascendo as rugas
Morrendo as fugas a as ilusões
Tateando as pregas
Se deixa entregue às recordações
Em seu dorso farto
Carrega o fardo de caracol
Mas espera atento
Que o céu cinzento lhe traga o sol
Ele sabe o mundo
O saber profundo de quem se vai
O que não faria
Pudesse um dia voltar atrás
Range o velho barco
Lamento amargo do que não fez
E o futuro espelha
Esse mesmo velho que são vocês
Obrigado e parabéns Meninas!
.
domingo, 6 de setembro de 2009
Aparições: as ventanias, à noite de Antonio Cândido Portinari
As ventanias, à noite
Davam-nos um medo, um medo
Comprido. Elas traziam todas
As assombrações. As árvores
Retorciam-se e assobiavam
Forte. Nossas
Casas frágeis, muitas vezes
Eram destelhadas. Ninguém
Dormia. Os relâmpagos
Pareciam serpentes endemoniadas
Pegando fogo. Ao amanhecer
A claridade trazia-nos alegria,
Mesmo que os estragos fossem
Grandes. Quase sempre lamentávamos
A morte de um pinto ou a
Ausência do cabritinho.
Nunca mais vi o vento.
Seria um bando de almas penadas
Em fúria? ou a queda de alguma
Estrela?
Muito branco, macilento, uns fiapos
Alourados no bigode. Roupas sem cor.
Desbotadas. Emitia alguns sons.
Chapéu afunilado e roto.
Sempre trazia as mãos atrás das
Costas. Entrava em algumas casas
E se dirigia à cozinha. Alimentava-se
Os meninos o
Acompanhavam. Tinham pena dele
Tinham-lhe simpatia. Às vezes ia pelas
Estradas e voltava depois de três
Ou quatro dias todo avermelhado
Da terra das fazendas de café.
Ângelo bobo era irmão de todos.
Um dia caminhou, caminhou
Foi até o fim do mundo.
Montado no galho de uma árvore do pasto
Tocava bombardino. Os anjos dos arredores
Vinham me acompanhar com seus violinos
Os bois se aglomeravam silenciosos
Para nos ouvir. O sol retardava
A descida e a lua se avivava.
Minha alegria era imensa. Aos poucos vinha
O escuro me amedrontava, e os anjos
Se iam. A música cessava. Os bois,
Um atrás do outro, tomavam seu trilho.
Sozinho tratava de sair, assobiava
Ligeiro e forte, numa carreira chegava
Em casa. A luz mortiça do lampião
Projetava nas paredes sombras
Movediças e inquietantes.
Nessas noites ficava com os nervos
Expostos, qualquer ruído me atemorizava.
Nunca mais vi os anjos e nem o bombardino.
Numa madrugada fria a lua nos dava
Pequena e bruxuleante claridade.
Saía-se cismando por ali afora.
Quem se lembra das frutas-de-lobo,
Com suas flores roxas e galhos espinhentos?
Não lhe sabíamos a serventia. Era voz
Corrente sua aliança com o diabo
E as visitas constantes dos urubus ...
O Saci-Pererê trançava-lhe os galhos.
As goiabeiras quando nasciam
Espiavam para todos os lados
Se a vista as alcançava,
Tratavam de nascer em outro sítio.
Os pássaros jamais pousavam nelas,
Mas se acontecesse, tínhamos certeza
De que eram forasteiros. Um dia uma
Saindo correndo atrás das crianças
Que lhe atiravam pedras.
Gosto dos rios, do seu aspecto manso.
Onde nasci não os há, só existem córregos.
As águas incautas vão ligeiras e nos
Moinhos são estranguladas. Avisam-nos
Do perigo dos redemoinhos. Em toda
Parte os avistávamos, até no campo.
Iam deslizando,
Perdiam-se ao longe.
Vi o primeiro rio, parecia um mar
Foi o Pardo; atravessava cidades.
Dele tiravam areia, peixe e muita maleita.
Suas margens eram povoadas de almas
Penadas: senhores de escravos apareciam
A certas horas e em determinados
Lugares – em grande barco negro.
Dos seus dedos saía fogo.
Se a calda do cometa
Relar na terra, o mundo
Acabará, comentavam os
Homens do meu povoado.
Nós parávamos de brincar.
Ficávamos vigilantes
Olhando o céu. De vez em
Quando alguém dizia: ele
Passou correndo e escondeu-se
Atrás das outras estrelas!
Protestávamos:
__ Você o que viu foi a
Alma penada
Vivíamos entre o sonho
E o medo. Acabaram-se os cometas.
Quantas vezes montado
Nas árvores fazia grandes
Viagens. O silêncio no campo
Nos transportava para longe.
Entrávamos no mundo
Desconhecido. A imaginação
Varava as nuvens e o vento.
Ao nosso redor os zebus pastavam.
O mugir de algum assustava-nos
E caíamos na realidade.
Já começavam as aparecer as sombras da noite.
Infância atribulada.
Nos dias de assassinatos
A noite era de pesadelos.
Sofrimentos.
Só no campo havia
Tranqüilidade.
Caminhava pelo trilho dos animais
Ali sonhava com tanta intensidade!
Ao longe via príncipes,
Princesas e o rei amigo. Sentia-me
Em outras cidades. Em qualquer
Seria melhor.
Os medos e a morte viviam
Em meu povoado.
De mãos dadas com uma
Anja de grande beleza.
Seu aparecimento transformou-me:
Perdi o juízo. Um dia levou-me
Ao paraíso. Vi meus velhos amigos,
Falei-lhes insistentemente,
Mas eles não me olhavam, não deram por mim
As flores eram imensas. Não vi
Nenhum santo conhecido.
Saí triste pensando em meus amigos.
Quantos mortos vi passar! Vejo ainda
Os enterros dobrando a praça. Homens silenciosos
E escuros, vindos das fazendas distantes,
Trazendo o caixão negro, cansados do
Longo caminhar. Meu cérebro se
Enchei de caixões pretos, assombrações,
Pavor. Alguém mais velho vinha
Fazer-me companhia.
Ao amanhecer o sol afugentava
Todos os medos.
Muitas vezes ia ao campo caçar
Lobos e tigres: enchia o embornal
De pedras e levava o estilingue.
Voltava sem caça. Não existiam
Essas feras em nosso campo:
Experimentava apenas minha coragem ...
Minha vida é tua presença
Teu espírito, tua voz, tua pele e
Teu corpo. Tua claridade ilumina o escondido
Até o céu caminhemos de mãos dadas
Pelo azul. Perto das estrelas mais luminosas.
Sem te tocar, meu corpo incendeia-se
Se acontecesse também a ti ...
Unidos num corpo só.
Um dentro do outro
Como pássaros invisíveis
Na inocência criaríamos o bem permanente.
Rio, agosto de 1961.
.
Davam-nos um medo, um medo
Comprido. Elas traziam todas
As assombrações. As árvores
Retorciam-se e assobiavam
Forte. Nossas
Casas frágeis, muitas vezes
Eram destelhadas. Ninguém
Dormia. Os relâmpagos
Pareciam serpentes endemoniadas
Pegando fogo. Ao amanhecer
A claridade trazia-nos alegria,
Mesmo que os estragos fossem
Grandes. Quase sempre lamentávamos
A morte de um pinto ou a
Ausência do cabritinho.
Nunca mais vi o vento.
Seria um bando de almas penadas
Em fúria? ou a queda de alguma
Estrela?
Muito branco, macilento, uns fiapos
Alourados no bigode. Roupas sem cor.
Desbotadas. Emitia alguns sons.
Chapéu afunilado e roto.
Sempre trazia as mãos atrás das
Costas. Entrava em algumas casas
E se dirigia à cozinha. Alimentava-se
Os meninos o
Acompanhavam. Tinham pena dele
Tinham-lhe simpatia. Às vezes ia pelas
Estradas e voltava depois de três
Ou quatro dias todo avermelhado
Da terra das fazendas de café.
Ângelo bobo era irmão de todos.
Um dia caminhou, caminhou
Foi até o fim do mundo.
Montado no galho de uma árvore do pasto
Tocava bombardino. Os anjos dos arredores
Vinham me acompanhar com seus violinos
Os bois se aglomeravam silenciosos
Para nos ouvir. O sol retardava
A descida e a lua se avivava.
Minha alegria era imensa. Aos poucos vinha
O escuro me amedrontava, e os anjos
Se iam. A música cessava. Os bois,
Um atrás do outro, tomavam seu trilho.
Sozinho tratava de sair, assobiava
Ligeiro e forte, numa carreira chegava
Em casa. A luz mortiça do lampião
Projetava nas paredes sombras
Movediças e inquietantes.
Nessas noites ficava com os nervos
Expostos, qualquer ruído me atemorizava.
Nunca mais vi os anjos e nem o bombardino.
Numa madrugada fria a lua nos dava
Pequena e bruxuleante claridade.
Saía-se cismando por ali afora.
Quem se lembra das frutas-de-lobo,
Com suas flores roxas e galhos espinhentos?
Não lhe sabíamos a serventia. Era voz
Corrente sua aliança com o diabo
E as visitas constantes dos urubus ...
O Saci-Pererê trançava-lhe os galhos.
As goiabeiras quando nasciam
Espiavam para todos os lados
Se a vista as alcançava,
Tratavam de nascer em outro sítio.
Os pássaros jamais pousavam nelas,
Mas se acontecesse, tínhamos certeza
De que eram forasteiros. Um dia uma
Saindo correndo atrás das crianças
Que lhe atiravam pedras.
Gosto dos rios, do seu aspecto manso.
Onde nasci não os há, só existem córregos.
As águas incautas vão ligeiras e nos
Moinhos são estranguladas. Avisam-nos
Do perigo dos redemoinhos. Em toda
Parte os avistávamos, até no campo.
Iam deslizando,
Perdiam-se ao longe.
Vi o primeiro rio, parecia um mar
Foi o Pardo; atravessava cidades.
Dele tiravam areia, peixe e muita maleita.
Suas margens eram povoadas de almas
Penadas: senhores de escravos apareciam
A certas horas e em determinados
Lugares – em grande barco negro.
Dos seus dedos saía fogo.
Se a calda do cometa
Relar na terra, o mundo
Acabará, comentavam os
Homens do meu povoado.
Nós parávamos de brincar.
Ficávamos vigilantes
Olhando o céu. De vez em
Quando alguém dizia: ele
Passou correndo e escondeu-se
Atrás das outras estrelas!
Protestávamos:
__ Você o que viu foi a
Alma penada
Vivíamos entre o sonho
E o medo. Acabaram-se os cometas.
Quantas vezes montado
Nas árvores fazia grandes
Viagens. O silêncio no campo
Nos transportava para longe.
Entrávamos no mundo
Desconhecido. A imaginação
Varava as nuvens e o vento.
Ao nosso redor os zebus pastavam.
O mugir de algum assustava-nos
E caíamos na realidade.
Já começavam as aparecer as sombras da noite.
Infância atribulada.
Nos dias de assassinatos
A noite era de pesadelos.
Sofrimentos.
Só no campo havia
Tranqüilidade.
Caminhava pelo trilho dos animais
Ali sonhava com tanta intensidade!
Ao longe via príncipes,
Princesas e o rei amigo. Sentia-me
Em outras cidades. Em qualquer
Seria melhor.
Os medos e a morte viviam
Em meu povoado.
De mãos dadas com uma
Anja de grande beleza.
Seu aparecimento transformou-me:
Perdi o juízo. Um dia levou-me
Ao paraíso. Vi meus velhos amigos,
Falei-lhes insistentemente,
Mas eles não me olhavam, não deram por mim
As flores eram imensas. Não vi
Nenhum santo conhecido.
Saí triste pensando em meus amigos.
Quantos mortos vi passar! Vejo ainda
Os enterros dobrando a praça. Homens silenciosos
E escuros, vindos das fazendas distantes,
Trazendo o caixão negro, cansados do
Longo caminhar. Meu cérebro se
Enchei de caixões pretos, assombrações,
Pavor. Alguém mais velho vinha
Fazer-me companhia.
Ao amanhecer o sol afugentava
Todos os medos.
Muitas vezes ia ao campo caçar
Lobos e tigres: enchia o embornal
De pedras e levava o estilingue.
Voltava sem caça. Não existiam
Essas feras em nosso campo:
Experimentava apenas minha coragem ...
Minha vida é tua presença
Teu espírito, tua voz, tua pele e
Teu corpo. Tua claridade ilumina o escondido
Até o céu caminhemos de mãos dadas
Pelo azul. Perto das estrelas mais luminosas.
Sem te tocar, meu corpo incendeia-se
Se acontecesse também a ti ...
Unidos num corpo só.
Um dentro do outro
Como pássaros invisíveis
Na inocência criaríamos o bem permanente.
Rio, agosto de 1961.
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