quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O Amor Acaba, de Paulo Mendes Campos


O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unha...s; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; PARA RECOMEÇAR EM TODOS OS LUGARES E A QUALQUER MINUTO O AMOR ACABA..



(“Revista da ABL”, nº 210, vol.III, pág.11, de nov. 1973)



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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

DÉJEUNER DU MATIN (Café da manhã) , de Jacques Prévert





Pôs café

na xícara

Pôs leite

na xícara com café

Pôs açúcar

no café com leite

Com a colherzinha

mexeu

Bebeu o café com leite

E pôs a xícara no pires

Sem me falar

acendeu

um cigarro

Fez círculos

com a fumaça

Pôs as cinzas

no cinzeiro

Sem me falar

Sem me olhar

Levantou-se

Pôs

o chapéu na cabeça

Vestiu

a capa de chuva

porque chovia

E saiu

debaixo de chuva

Sem uma palavra

Sem me olhar

Quanto a mim pus

a cabeça entre as mãos

E chorei.
                                  ......................................

DÉJEUNER DU MATIN


Il a mis le café

Dans la tasse

Il a mis le lait

Dans la tasse de café

Il a mis le sucre

Dans le café au lait

Avec le petit cuiller

Il a tourné

Il a bu le café au lait

Et il a resposé la tasse

Sans me parler

Il a alumé

Une cigarrette

Il a fait des ronds

Avec la fumée

Il a mis des cendres

Dans le cendrier

Sans me parler

Sans me regarder

Il s'est levé

Il a mis

Son chapeau sur la tête

Il a mis

Son manteau de pluie

Parce qu'il pleuvait

Il est parti

Sous la pluie

Sans une parole

Sans me regarder

E moi j'ai pris

Ma tête dans ma main

E j'ai pleuré.







domingo, 26 de fevereiro de 2012

EVOCAÇÃO DA ROSA, de Abdias do Nascimento


Era uma vez uma rosa

que não era vegetal

nem rosa mineral

carecia até da cor de rosa

era uma gata formosa

negra amarela e brancosa

irrequietamente caprichosa

vestida de suave pêlo multicor



Bichana terrivelmente amorosa

dos laços dos seus encantos

nenhum gato jamais se livrou

pelos telhados miava dengosa

suspirava a noite inteira

seduzindo namoradeira

toda a gataria ao

luar da lua alcoviteira



Certo dia Rosa pariu

uma ninhada de gatinhos

de várias cores engraçadinhos

os mais lindos eram os pretinhos

mamavam de patinhas entrelaçadas

ronronando de olhos cerrados

boquinhas rosadas coladas

às rosadas tetas de Rosa



Num desses momentos

um gatão assassino

pêlo sujo debotado

miando feio saltou felino

matando gatinho por todo lado



A mãe valente e briosa

socorri de porrete na mão

ajudei a defesa de Rosa

esbordoando estridente

perseguindo o ladrão

ele fugiu espavorido

um gatinho levando nos dentes

outros sangravam na agonia

Rosa fuzilava os olhos dementes

miando plangente a dor que lhe doía

noites a fio seu gemer se ouvia

ó doce e carinhosa Rosa

era de cortar o coração

ver-te enlouquecida

recusar enfurecida

aquela felina traição

ir definhando entristecida

até a completa inanição



Rosa cheirosa e macia

que ao morrer no

meu jardim plantei

sob a terra desapareceu

aos cuidados da minha

pobre primavera de

uma gata demente e morta

a rosa-gata enternecida

em rosa-flor floresceu

foram ambas a

única rosa que

a infância me deu



Buffalo, 30 de janeiro de 1981









sábado, 25 de fevereiro de 2012

HÁ MUITO TEMPO...de MIGUEL TORGA


Há muito tempo já não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
... Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
- Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor



(“Revista de Coimbra”, nº. 98, vol. 34, pág. 75)

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domingo, 19 de fevereiro de 2012

O Sentimento do Sublime


Vinicius de Moraes


Místico






O ar está cheio de murmúrios misteriosos


E na névoa clara das coisas há um vago sentido de espiritualização…


Tudo está cheio de ruídos sonolentos


Que vêm do céu, que vêm do chão


E que esmagam o infinito do meu desespero.






Através do tenuíssimo de névoa que o céu cobre


Eu sinto a luz desesperadamente


Bater no fosco da bruma que a suspende.


As grandes nuvens brancas e paradas –


Suspensas e paradas


Como aves solícitas de luz –


Ritmam interiormente o movimento da luz:


Dão ao lago do céu


A beleza plácida dos grandes blocos de gelo.






No olhar aberto que eu ponho nas coisas do alto


Há todo um amor à divindade.


No coração aberto que eu tenho para as coisas do alto


Há todo um amor ao mundo.


No espírito que eu tenho embebido das coisas do alto


Há toda uma compreensão.






Almas que povoais o caminho de luz


Que, longas, passeais nas noites lindas


Que andais suspensas a caminhar no sentido da luz


O que buscais, almas irmãs da minha?


Por que vos arrastais dentro da noite murmurosa


Com os vossos braços longos em atitude de êxtase?


Vedes alguma coisa


Que esta luz que me ofusca esconde à minha visão?


Sentis alguma coisa


Que eu não sinta talvez?


Por que as vossas mãos de nuvem e névoa


Se espalmam na suprema adoração?


É o castigo, talvez?






Eu já de há muito tempo vos espio


Na vossa estranha caminhada.


Como quisera estar entre o vosso cortejo


Para viver entre vós a minha vida humana...


Talvez, unido a vós, solto por entre vós


Eu pudesse quebrar os grilhões que vos prendem...






Sou bem melhor que vós, almas acorrentadas


Porque eu também estou acorrentado


E nem vos passa, talvez, a idéia do auxílio.


Eu estou acorrentado à noite murmurosa


E não me libertais...


Sou bem melhor que vós, almas cheias de humildade.


Solta ao mundo, a minha alma jamais irá viver convosco.






Eu sei que ela já tem o seu lugar


Bem junto ao trono da divindade


Para a verdadeira adoração.






Tem o lugar dos escolhidos


Dos que sofreram, dos que viveram e dos que compreenderam.














Rio de Janeiro, 1933





domingo, 5 de fevereiro de 2012

Saudade, de Rita Lacerda Watts, boa amiga

Saudade é dor que dói sentida
Dor que corrói
É a viagem do tempo sabida
Mas não protegida
Pelo vai e vem.

... ... Saudade é a lembrança da sorte
Inimiga da morte
Porque vive várias vezes
Mesmo que sofrida
A alegria de alguém.

Saudade é fé e esperança
É pura como criança
Vem correndo e te alcança
Quando menos você espera
De pureza dura
e força singela
É um laço invisível
Que liga as almas amigas
Numa trama querida
Aqui e no além.

(Estou tendo o privilégio de publicar esse poema pela primeira vez e aqui no FB. Agradeço-lhe muito,Ritoca)

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