sábado, 31 de julho de 2010

As Alvarengas, de Joaquim Cardozo

"Tous les chemins vont vers la ville”
Verhaeren


As alvarengas!
Ei-las que vão e vem; outras paradas,
Imóveis. O ar silêncio. Azul céu, suavemente.
Na tarde sombra o velho cais do Apolo.
O sol das cinco ascende um farol no zimbório
Da Assembléia.
As alvarengas!
Madalena. Deus te guie, flor de Zongue.
Negros curvando os dorsos nus
Impelem-nas ligeiras.
Vem de longe, dos campos saqueados.
Onde é tenaz a luta entre o Homem e a Terra.
Trazendo, nos bojos negros.
Para a cidade.
A ignota riqueza que o solo vencido abandona.
O latente rumor das florestas despedaçadas.

A cidade voragem.
É o Moloch, é o abismo, é a caldeira...
Além, pelo ar distante e sobre as casas.
As chaminés fumegam e o vento alonga.
O passo de parafuso.
E lentas.
Vão seguindo, negras, jogando, cansadas;
E seguindo-as também, em curvas n’água propagadas.
A dor da terra, o clamor das raízes.



(Revista da ABL, 1988)

quinta-feira, 29 de julho de 2010

META, de Flora Figueiredo

Dispenso o emaranhado de tristeza.
Jogo a saudade sobre a mesa,
grudo os desapontos no teto.
Passo reto, abro alas.

Arrombo portas, devasso salas,
empurro mágoas pendentes no corredor.
Recolho um favor que, desprezado,
jaz no canto, roto e desbotado,
encosto de um lado um desafeto.
Abro alas, passo reto.

Banho-me lá fora
com a gota de lua caída da aurora,
e lavo minha história.

Quando enxuta,
divisam-se glórias impolutas.
Descubro-me mulher, guerreira, artista
e bato palma.

Abro meus braços, lavo a alma;
percebo logo ali um sol nascente.
Meu passo é reto,
abro alas.
Sigo em frente.
Meta

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Desaparecimento de Luisa Porto, de Carlos Drummond de Andrade

Pede-se a quem souber
do paradeiro de Luísa Porto
avise sua residência
À Rua Santos Óleos, 48.
Previna urgente
solitária mãe enferma
entrevada ha longos anos
erma de seus cuidados.


Pede-se a quem avistar
Luísa Porto, de 37 anos,
que apareça, que escreva,
que mande dizer
onde está.
Suplica-se ao repórter-amador,
ao caixeiro, ao mata-mosquitos, ao transeunte,
a qualquer do povo e da classe média,
até mesmo aos senhores ricos,
que tenham pena de mãe aflita
e lhe restituam a filha volatilizada
ou pelo menos dêem informações.
É alta, magra,
morena, rosto penugento, dentes alvos,
sinal de nascença junto ao olho esquerdo,
levemente estrábica.
Vestidinho simples. Óculos.
Sumida há três meses.
Mãe entrevada chamando.


Roga-se ao povo caritativo desta cidade
que tome em consideração um caso de família
digno de simpatia especial.
Luísa é de bom gênio, correta, meiga, trabalhadora, religiosa.
Foi fazer compras na feira da praça.
Não voltou.


Levava pouco dinheiro na bolsa.
(Procurem Luísa.)
De ordinário não se demorava.
(Procurem Luísa.)
Namorado isso não tinha.
(Procurem. Procurem.)
Faz tanta falta.


Se todavia não a encontrarem
nem por isso deixem de procurar
com obstinação e confiança que Deus sempre recompensa
e talvez encontrem.
Mãe, viúva pobre, não perde a esperança.
Luísa ia pouco a cidade
e aqui no bairro é onde melhor pode ser pesquisada.
Sua melhor amiga, depois da mãe enferma,
É Rita Santana, costureira, moça desimpedida.
a qual não da noticia nenhuma,
limitando-se a responder: Não sei.
O que não deixa de ser esquisito.


Somem tantas pessoas anualmente
numa cidade como o Rio de janeiro
que talvez Luísa Porto jamais seja encontrada.
Uma vez, em 1898,
ou 9,
sumiu o próprio chefe de polícia
que saíra a tarde para uma volta no Largo do Rocio
e até hoje.
A mãe de Luísa, então jovem, leu no Diário Mercantil,
ficou pasma.
O jornal embrulhado na memória.
Mal sabia ela que o casamento curto, a viuvez,
a pobreza, a paralisia, o queixume
seriam, na vida, seu lote
e que sua única filha, afável posto que estrábica,
se diluiria sem explicação.


Pela ultima vez e em nome de Deus
todo-poderoso e cheio de misericórdia
procurem a moça, procurem
essa que se chama Luísa Porto
e é sem namorado.
Esqueçam a luta política,
ponham de lado preocupações comerciais,
percam um pouco de tempo indagando,
inquirindo, remexendo.
Não se arrependerão. Não
há gratificação maior do que o sorriso
de mãe em festa
e a paz intima
conseqüente às boas e desinteressadas ações,
puro orvalho da alma.


Não me venham dizer que Luísa suicidou-se.
O santo lume da fé
ardeu sempre em sua alma
pertence a Deus e a Teresinha do Menino Jesus.
Ela não se matou.
Procurem-na.
Tampouco foi vítima de desastre que a polícia ignora
e os jornais não deram.
Está viva para consolo de uma entrevada
e triunfo geral do amor materno
filial e do próximo.


Nada de insinuações quanto à moça casta
e que não tinha, não tinha namorado.
Algo de extraordinário terá acontecido,
terremoto, chegada de rei.
As ruas mudaram de rumo,
para que demore tanto, é noite.
Mas há de voltar, espontânea
ou trazida por mão benigna,
O olhar desviado e terno, canção.


A qualquer hora do dia ou da noite
quem a encontrar avise a Rua Santos Óleos.
Não tem telefone.
Tem uma empregada velha que apanha o recado
e tomará providencias.


Mas
se acharem que a sorte dos povos é mais importante
e que não devemos atentar nas dores individuais,
se fecharem ouvidos a este apelo de campainha,
não faz mal, insultem a mãe de Luísa,
virem a pagina:
Deus terá compaixão da abandonada e da ausente,
erguerá a enferma, e os membros perclusos
já se desatam em forma de busca.
Deus lhe dirá :
Vai,
procura tua filha, beija-a e fecha-a para sempre em teu coração.

Ou talvez não seja preciso esse favor divino.
A mãe de Luísa ( somos pecadores )
sabe-se indigna de tamanha graça.
E resta a espera, que sempre é um dom.
Sim, os extraviados um dia regressam
— ou nunca, ou pode ser, ou ontem.
E de pensar realizamos.
Quer apenas sua filhinha
que numa tarde remota de Cachoeiro
acabou de nascer e cheira a leite,
a cólica, a lágrima.
Já não interessa a descrição do corpo
nem esta, perdoem, fotografia,
disfarces de realidade mais intensa
e que anúncio algum proverá.
Cessem pesquisas, rádios, calai-vos•
Calma de flores abrindo
no canteiro azul
onde desabrocham seios e uma forma de virgem
intata nos tempos.
E de sentir compreendemos.
Já não adianta procurar
minha querida filha Luísa
que enquanto vagueio pelas cinzas do mundo
com inúteis pés fixados, enquanto sofro
e sofrendo me solto e me recomponho
e torno a viver e ando,
está inerte
gravada no centro da estrela invisível
Amor.


(in "Obra Completa" "Novos Poemas"(1946-1947),Edi. Aguilar, 1964, pag. 221)


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terça-feira, 20 de julho de 2010

Sinal fechado, de Paulinho da Viola

Olá, como vai ?
Eu vou indo e você,
tudo bem ?
Tudo bem eu vou indo correndo
Pegar meu lugar no
futuro, e você ?
Tudo bem, eu vou indo em busca
De um sono tranquilo,
quem sabe ...
Quanto tempo... pois é...
Quanto tempo...
Me perdoe a
pressa
É a alma dos nossos negócios
Oh! Não tem de quê
Eu também só
ando a cem
Quando é que você telefona ?
Precisamos nos ver por aí
Pra semana, prometo talvez nos vejamos
Quem sabe ?
Quanto tempo...
pois é... (pois é... quanto tempo...)
Tanta coisa que eu tinha a dizer
Mas eu sumi na poeira das ruas
Eu também tenho algo a dizer
Mas me
foge a lembrança
Por favor, telefone, eu preciso
Beber alguma coisa,
rapidamente
Pra semana
O sinal ...
Eu espero você
Vai abrir...
Por favor, não esqueça,
Adeus...


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sexta-feira, 16 de julho de 2010

Um Plano Genial, de Aparício Torelly (Barão de Itararé)

Joaquim Rebolão estava desempregado e lutava com grandes dificuldades para se manter. A sua situação ainda mais se agravava pelo fato de ter que dar assistência a um filho, rapaz inexperiente que também estava no desvio.

Joaquim Rebolão, porém, defendia-se como um autêntico leão da Núbia, neste deserto de homens e idéias.

O seu cérebro, torturado pela miséria, era fértil e brilhante, engendrando planos verdadeiramente geniais, graças aos quais sempre se saía galhardamente das aperturas diárias com que o destino cruel o torturava.

Naquele dia, o seu grude já estava garantido. Recebera convite para um banquete de cerimônia, em homenagem a um alto figurão que estava necessitando de claque. Mas o nosso herói não estava satisfeito, porque não conseguira um convite para o filho.

À hora marcada, porém, Rebolão, acompanhado do rapaz, dirige-se para o salão, onde se celebraria a cerimônia. Antes de penetrar no recinto, diz a seu filho faminto:

— Fica firme aqui na porta um momento, porque preciso dar um jeito a fim de que tu também tomes parte no festim. Já estavam todos os convidados sentados nos respectivos lugares, na grande mesa em forma de ferradura, quando, ao começar o bródio, Rebolão se levanta e exclama:

— Senhores, em vista da ausência do Sr. Vigário nesta festa, tomo a liberdade de benzer a mesa. Em nome do Padre e do Espírito Santo!

— E o filho? — perguntou-lhe um dos convivas.

— Está na porta — responde prontamente. E, voltando-se para o rapaz, ordena, autoritário e enérgico:

— Entra de uma vez, menino! Não vês que estes senhores te estão chamando?




(Extraído do livro “Máximas e Mínimas do Barão de Itararé”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1985, pág. 40, organização de Afonso Félix de Souza.)

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segunda-feira, 12 de julho de 2010

Silêncio e palavra, de Thiago de Mello

I

A couraça das palavras
protege o nosso silêncio
e esconde aquilo que somos


Que importa falarmos tanto?
Apenas repetiremos.


Ademais, nem são palavras.
Sons vazios de mensagem,
são como a fria mortalha
do cotidiano morto.
Como pássaros cansados,
que não encontraram pouso
certamente tombarão.


Muitos veríµes se sucedem:
o tempo madura os frutos,
branqueia nossos cabelos.
Mas o homem noturno espera
a aurora da nossa boca.

II

Se mãos estranhas romperem
a veste que nos esconde,
acharão uma verdade
em forma não revelável.
(E os homens têm olhos sujos,
não podem ver através.)


Mas um dia chegará
em que a oferenda dos deuses,
dada em forma de silêncio,
em palavra transfaremos.


E se porventura a dermos
ao mundo, tal como a flor
que se oferta - humilde e pura - ,
teremos então cumprido
a missão que é dada ao poeta.
E como são onda e mar,
seremos palavra e homem

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sábado, 10 de julho de 2010

A floresta, de Vinicius de Moraes

Sobre o dorso possante do cavalo
Banhado pela luz do sol nascente
Eu penetrei o atalho, na floresta.
Tudo era força ali, tudo era força
Força ascencional da natureza.
A luz que em torvelinhos despenhava
Sobre a coma verdíssima da mata
Pelos claros das árvores entrava
E desenhava a terra de arabescos.
Na vertigem suprema do galope
Pelos ouvidos, doces, perpassavam
Cantos selvagens de aves indolentes.
A branda aragem que do azul descia
E nas folhas das árvores brincava
Trazia à boca um gosto saboroso
De folha verde e nova e seiva bruta.
Vertiginosamente eu caminhava
Bêbado da frescura da montanha
Bebendo o ar estranguladamente.
Às vezes, a mão firme apaziguava
O impulso ardente do animal fogoso
Para ouvir de mais perto o canto suave
De alguma ave de plumagem rica
E após, soltando as rédeas ao cavalo
Ia de novo loucamente à brisa.

De repente parei. Longe, bem longe
Um ruído indeciso, informe ainda
Vinha às vezes, trazido pelo vento.
Apenas branda aragem perpassava
E pelo azul do céu, nenhuma nuvem.
Que seria? De novo caminhando
Mais distinto escutava o estranho ruído
Como que o ronco baixo e surdo e cavo
De um gigante de lenda adormecido.

A cachoeira, Senhor! A cachoeira!
Era ela. Meu Deus, que majestade!
Desmontei. Sobre a borda da montanha
Vendo a água lançando-se em peitadas
Em contorsões, em doidos torvelinhos
Sobre o rio dormente e marulhoso
Eu tive a estranha sensação da morte.

Em cima o rio vinha espumejante
Apertando entre as pedras pardacentas
Rápido e se sacudindo em branca espuma.
De repente era o vácuo embaixo, o nada
A queda célere e desamparada
A vertigem do abismo, o horror supremo
A água caindo, apavorada, cega
Como querendo se agarrar nas pedras
Mas caindo, caindo, na voragem
E toda se estilhaçando, espumecente.

Lá fiquei longo tempo sobre a rocha
Ouvindo o grande grito que subia
Cheio, eu também, de gritos interiores.
Lá fiquei, só Deus sabe quanto tempo
Sufocando no peito o sofrimento
Caudal de dor atroz e inapagável
Bem mais forte e selvagem do que a outra.
Feita ela toda de esperança
De não poder sentir a natureza
Com o espírito em Deus que a fez tão bela.

Quando voltei, já vinha o sol mais alto
E alta vinha a tristeza no meu peito.
Eu caminhei. De novo veio o vento
Os pássaros cantaram novamente
De novo o aroma rude da floresta
De novo o vento. Mas eu nada via.
Eu era um ser qualquer que ali andava
Que vinha para o ponto de onde viera
Sem sentido, sem luz, sem esperança
Sobre o dorso cansado de um cavalo.




(Rio de Janeiro, 1933
in O caminho para a distância
in Poesia completa e prosa: "O sentimento do sublime" )

Enviado pelo meu amigo Ronaldo Derly Rodrigues, ao ensejo dos 30 anos da partida do nosso poetinha...

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terça-feira, 6 de julho de 2010

Hora Grave, de Rainer Maria Rilke

(Tradução: Paulo Plínio Abreu)


Quem agora chora em algum lugar do mundo,
Sem razão chora no mundo,
Chora por mim.

Quem agora ri em algum lugar na noite,
Sem razão ri dentro da noite,
Ri-se de mim.

Quem agora caminha em algum lugar no mundo,
Sem razão caminha no mundo,
Vem a mim.

Quem agora morre em algum lugar no mundo,
Sem razão morre no mundo,
Olha para mim.


Rainer Maria Rilke (Praga, 4 de dezembro de 1875 — Valmont, Suíça, 29 de dezembro de 1926) foi um dos mais importantes poetas de língua alemã do século XX. Rilke fez seus estudos nas universidades de Praga, Munique e Berlim. Em 1894 fez sua primeira publicação, uma coleção de versos de amor, intitulados Vida e canções (Leben und Lieder), 1894.

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sábado, 3 de julho de 2010

Passagem das horas, de Fernando Pessoa

"Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero."


(in "Quando fui outro", Ed. Objetiva, 2006, pág. 101.

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quinta-feira, 1 de julho de 2010

Da Imparcialidade, de Mário Quintana

A imparcialidade é uma atitude desonesta. De duas uma: ou o imparcial está mentindo, traindo acaso as suas mais legítimas preferências, ou então não passa de um exato robô, mero boneco mecânico sem opinião pessoal, sem nada de humano.
Aquela frase de Voltaire, tão citada: “Não creio numa só palavra do que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de dizer”, é uma das coisas mais demagógicas que alguém já poderia ter proferido; se achamos que algo é nocivo, meu Deus, como dormir tranquilos sem evitar sua propagação? Felizmente para Voltaire, a sua vida toda foi um desmentido a isto, e até hoje nos admiramos da sua corajosa parcialidade.

Quem começou a desmoralizar o conceito de imparcialidade, se não me engano, Pôncio Pilatos, que apenas desempenhou uma pontinha na História...Mas que pontinha! Todavia, a verdadeira imparcialidade não deve ser essa de Pilatos, tão cômoda e tão cara aos hedonistas. Mas sim a proclamação da verdade própria, ou da própria verdade, antes, acima e apesar de tudo. E como o leitor em geral adora fatos e boceja com idéias, exemplifiquemos, para terminar, com dois casos da última grande guerra.

Von Braum, quando o instaram para que apressasse, inventasse, descobrisse, o quanto antes, por motivos óbvios, um novo foguete V, ou melhor, um V3, respondeu aos chefes nazistas:”Que importa quem ganhe a guerra? Eu quero é ir à Lua!”

E, por sua vez, o prefeito de Nagasaqui, Tsume Tajawa, após o bombardeio atômico de sua cidade, declarou:”Se o Japão possuísse o mesmo tipo de arma, te-la-ia usado”.

Eis aqui duas imparcialidades: uma subjetiva, a outra objetiva, uma idealista, a outra realista.

Só resta discutir o que você teria feito se estivesse na pelo de Pôncio Pilator...


(in “Da preguiça como método de trabalho”, Editora Globo, 1994, págs. 1900191)


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