quinta-feira, 31 de maio de 2012

QUEM SABE UM DIA , de Mario Quintana


Quem sabe um dia


Quem sabe um dia seremos


Quem sabe um dia viveremos


Quem sabe um dia morreremos!






Quem é quem


Quem é macho


Quem é fêmea


Quem é humano, apenas!






Sabe amar


Sabe de mim e de si


Sabe de nós


Sabe ser um!






Um dia


Um mês


Um ano


Um(a) vida!






Sentir primeiro, pensar depois


Perdoar primeiro, julgar depois


Amar primeiro, educar depois


Esquecer primeiro, aprender depois






Libertar primeiro, ensinar depois


Alimentar primeiro, cantar depois






Possuir primeiro, contemplar depois


Agir primeiro, julgar depois






Navegar primeiro, aportar depois


Viver primeiro, morrer depois


("A Cor do Invisível" , Ed. Globo , 1986 ,  pág. 47)





quarta-feira, 30 de maio de 2012

QUERO , de Carlos Drummond de Andrade

(A leitura do QUERO é sempre muito agradável ! Sugiro que se veja o vídeo com o Paulo Autran recitando: é fenomenal )


Quero que todos os dias do ano

todos os dias da vida

de meia em meia hora

de 5 em 5 minutos

me digas: Eu te amo.



Ouvindo-te dizer: Eu te amo,

creio, no momento, que sou amado.

No momento anterior

e no seguinte,

como sabê-lo?



Quero que me repitas até a exaustão

que me amas que me amas que me amas.

Do contrário evapora-se a amação

pois ao não dizer: Eu te amo,

desmentes

apagas

teu amor por mim.



Exijo de ti o perene comunicado.

Não exijo senão isto,

isto sempre, isto cada vez mais.

Quero ser amado por e em tua palavra

nem sei de outra maneira a não ser esta

de reconhecer o dom amoroso,

a perfeita maneira de saber-se amado:

amor na raiz da palavra

e na sua emissão,

amor

saltando da língua nacional,

amor

feito som

vibração espacial.



No momento em que não me dizes:

Eu te amo,

inexoravelmente sei

que deixaste de amar-me,

que nunca me amastes antes.



Se não me disseres urgente repetido

Eu te amoamoamoamoamo,

verdade fulminante que acabas de desentranhar,

eu me precipito no caos,

essa coleção de objetos de não-amor.





terça-feira, 29 de maio de 2012

NUM DIA (XLVII) , de Fernando Pessoa



NUM dia excessivamente nítido,

Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito

Para nele não trabalhar nada,

Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,

O que talvez seja o Grande Segredo,

Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.



Vi que não há natureza,

Que Natureza não existe,

Que há montes, vales planícies,

Que há árvores, flores , ervas,

Que há rios e pedras,

Mas que não há um todo a que isso pertença,

Que um conjunto real e verdadeiro

É uma doença das nossas idéias.



A Natureza é partes sem um todo

Isto é talvez o tal mistério de que falam.



Foi isso o que sem pensar nem parar,

Acertei que devia ser a verdade

Que todos andam a achar e que não acham,

E que só eu, porque a não fui achar , achei.






(in “Ficções do Interlúdio” , como Alberto Caeiro, “Obra Completa”, Ed. Aguilar, 1960, pág.165)

segunda-feira, 28 de maio de 2012

PARA PENSAR , de Mario Quintana




Existe apenas uma idade para sermos felizes, apenas uma epoca da vida de cada pessoa em que é possível sonhar, fazer planos e ter energia suficiente para os realizar apesar de todas as dificuldades e todos os obstáculos.



Uma só idade para nos encantarmos com a vida para vivermos apaixonadamente e aproveitarmos tudo com toda a intensidade, sem medo nem culpa de sentir prazer. Fase dourada em que podemos criar e recriar a vida à nossa própria imagem e semelhança, vestirmo-nos de todas as cores, experimentar todos os sabores e entregarmo-nos a todos os amores sem preconceitos nem pudor. Tempo de entusiasmo e coragem em que toda a disposição de tentar algo de novo e de novo quantas vezes for preciso.



Essa idade tão fugaz na nossa vida chama-se presente e tem a duração do instante que passa..



("Esconderijos do Tempo" , Ed. Globo , 1993 , pág. 54)

Pinçada do mural do facebook da minha mais que querida amiga Rossana Schettino.

domingo, 27 de maio de 2012

VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA , de Manuel Bandeira


Vou-me embora pra Pasárgada



Lá sou amigo do rei



Lá tenho a mulher que eu quero



Na cama que escolherei







Vou-me embora pra Pasárgada



Vou-me embora pra Pasárgada



Aqui eu não sou feliz



Lá a existência é uma aventura



De tal modo inconseqüente



Que Joana a Louca de Espanha



Rainha e falsa demente



Vem a ser contraparente



Da nora que nunca tive







E como farei ginástica



Andarei de bicicleta



Montarei em burro brabo



Subirei no pau-de-sebo



Tomarei banhos de mar!



E quando estiver cansado



Deito na beira do rio



Mando chamar a mãe-d'água



Pra me contar as histórias



Que no tempo de eu menino



Rosa vinha me contar



Vou-me embora pra Pasárgada







Em Pasárgada tem tudo



É outra civilização



Tem um processo seguro



De impedir a concepção



Tem telefone automático



Tem alcalóide à vontade



Tem prostitutas bonitas



Para a gente namorar







E quando eu estiver mais triste



Mas triste de não ter jeito



Quando de noite me der



Vontade de me matar



— Lá sou amigo do rei —



Terei a mulher que eu quero



Na cama que escolherei



Vou-me embora pra Pasárgada.





(Texto extraído do livro "Bandeira a Vida Inteira", Editora Alumbramento – Rio de Janeiro, 1986, pág. 90)






sábado, 26 de maio de 2012

PRESENÇA , de Mario Quintana


É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.



(Enviado pelo meu amigo Ronaldo Derly Rodrigues, a quem agradeço o privilégio da amizade!)

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Não me analise , de Mário Quintana


Por favor, não me analise



Não fique procurando cada ponto fraco meu.


Se ninguém resiste a uma análise profunda,


Quanto mais eu…


Ciumento, exigente, inseguro, carente


Todo cheio de marcas que a vida deixou


Vejo em cada grito de exigência


Um pedido de carência, um pedido de amor.






Amor é síntese


É uma integração de dados


Não há que tirar nem pôr


Não me corte em fatias


Ninguém consegue abraçar um pedaço


Me envolva todo em seus braços


E eu serei o perfeito amor.













quinta-feira, 24 de maio de 2012

DORME ! EU VELO POR VOCÊ , de Fernando Pessoa


Dorme enquanto eu velo...



Deixa-me sonhar...


Nada em mim é risonho.


Quero-te para sonho,


Não para te amar.


A tua carne calma


É fria em meu querer.


Os meus desejos são cansaços.


Nem quero ter nos braços


Meu sonho do teu ser.


Dorme, dorme. dorme,


Vaga em teu sorrir...


Sonho-te tão atento


Que o sonho é encantamento


E eu sonho sem sentir.



("Ficções do Interlúdio" , "Obra Completa" , Ed. Aguilar, 1960,pág. 287)

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Etapas, de Fernando Pessoa

Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final...
Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver.
Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos. Não importa o nome que damos, o que importa é deixar no passado os momentos da vida que já se acabaram.
Foi despedida do trabalho? Terminou uma relação? Deixou a casa dos pais? Partiu para viver em outro país? A amizade tão longamente cultivada desapareceu sem explicações?
Você pode passar muito tempo se perguntando por que isso aconteceu....
Pode dizer para si mesmo que não dará mais um passo enquanto não entender as razões que levaram certas coisas, que eram tão importantes e sólidas em sua vida, serem subitamente transformadas em pó. Mas tal atitude será um desgaste imenso para todos: seus pais, seus amigos, seus filhos, seus irmãos, todos estarão encerrando capítulos, virando a folha, seguindo adiante, e todos sofrerão ao ver que você está parado.
Ninguém pode estar ao mesmo tempo no presente e no passado, nem mesmo quando tentamos entender as coisas que acontecem conosco.
O que passou não voltará: não podemos ser eternamente meninos, adolescentes tardios, filhos que se sentem culpados ou rancorosos com os pais, amantes que revivem noite e dia uma ligação com quem já foi embora e não tem a menor intenção de voltar.
As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas realmente possam ir embora...
Por isso é tão importante (por mais doloroso que seja!) destruir recordações, mudar de casa, dar muitas coisas para orfanatos, vender ou doar os livros que tem.
Tudo neste mundo visível é uma manifestação do mundo invisível, do que está acontecendo em nosso coração... e o desfazer-se de certas lembranças significa também abrir espaço para que outras tomem o seu lugar.
Deixar ir embora. Soltar. Desprender-se.
Ninguém está jogando nesta vida com cartas marcadas, portanto às vezes ganhamos, e às vezes perdemos.
Não espere que devolvam algo, não espere que reconheçam seu esforço, que descubram seu gênio, que entendam seu amor. Pare de ligar sua televisão emocional e assistir sempre ao mesmo programa, que mostra como você sofreu com determinada perda: isso o estará apenas envenenando, e nada mais.
Não há nada mais perigoso que rompimentos amorosos que não são aceitos, promessas de emprego que não têm data marcada para começar, decisões que sempre são adiadas em nome do "momento ideal".
Antes de começar um capítulo novo, é preciso terminar o antigo: diga a si mesmo que o que passou, jamais voltará!
Lembre-se de que houve uma época em que podia viver sem aquilo, sem aquela pessoa - nada é insubstituível, um hábito não é uma necessidade.
Pode parecer óbvio, pode mesmo ser difícil, mas é muito importante.


Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade, ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida.
Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira. Deixe de ser quem era, e se transforme em quem é. Torna-te uma pessoa melhor e assegura-te de que sabes bem quem és tu próprio, antes de conheceres alguém e de esperares que ele veja quem tu és...
E lembra-te:
Tudo o que chega, chega sempre por alguma razão





terça-feira, 22 de maio de 2012

O ESPELHO , de Silvia Plath


Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo no mesmo momento
Do jeito que é, desembaçado de amor ou desprezo.
Não sou cruel, apenas verdadeiro —
O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.

O tempo todo medito do outro lado da parede.
Cor-de-rosa, desbotada. Há tanto tempo olho para ela
Que acho que faz parte do meu coração. Mas ela falha.
Escuridão e faces nos separam mais e mais.

Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vem e vai.
A cada manhã seu rosto repõe a escuridão.
Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha
Emerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível.


(Traço Freudiano - Veredas Lacanianas , objeto de um fecundo debate na Escola de Psicanálise da SPB e Oficina de Criação Literária Clarice Lispector , em nov/dez de 1981)

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Vocação para a felicidade, de Carlos Drummond de Andrade

Não serei o poeta de um mundo caduco

Não escreverei versos chorosos, cantando tristezas infinitas,
amores impossíveis, saudades dolorosas,
paixões trágicas e não correspondidas.

Tenho a vocação para a felicidade.
Ser feliz não me traz sentimento de culpa.
Não preciso da tristeza para justificar a inutilidade da vida.
Não preciso morrer e ir ao céu para encontrar a felicidade.
Quero-a e tenho-a neste espaço terreno do aqui e do agora.

A felicidade, tal e qual o amor, está dentro de mim
E transborda em ternuras, em melodias,
em carinhos, em alegrias, em cantos e encantos.

Sou feliz e não preciso me justificar.
Sorrio sem ver passarinho verde.
Não tenho medo de ser feliz.

Faço minha estrela brilhar.
Sem receio dos encontros, desencontros,
encantos e desencantos que o amor me diz.

Contrariedades? Eu as tenho.
E quem não as tem na vida secular ?
Escassez de dinheiro? Nem é bom falar
Amores não correspondidos? Separações?
Rejeições? Saudades incuráveis?
Carinhos reprimidos, ternuras guardadas,
sem a contra parte do outro?
Eu tenho aos montões.
Sou a rainha das perdas, necessárias ao meu crescimento.

Contudo quem não soube a sombra não sabe a luz.
E num livro de matemática existencial
juntei todos esses problemas insolúveis,
com as respostas nas últimas páginas.
Mas pra que me debruçar
sobre eles, procurando a solução
se a própria vida me conduz
a resposta final?

Sem medo de ser feliz vou por aqui e por ali
por onde os caminhos, as trilhas,
Os atalhos me levarem, traçando meu rumo.
Às vezes com alguma tristeza,
mas quem disse que felicidade
é o contrário de tristeza?
Tristeza é só uma momentânea falta de alegria!


É, amigo, amanhã é sempre um novo dia
E quando a infelicidade passar por aqui,
minhas malas estarão prontas
para eu ir por aí...


(in "Obra Completa", "Poética", Ed. Aguilar, 1964, pág. 365

domingo, 20 de maio de 2012

QUARTO EM DESORDEM , de Carlos Drummond de Andrade



Na curva perigosa dos cinqüenta


derrapei neste amor. Que dor! que pétala


sensível e secreta me atormenta


e me provoca à síntese da flor






que não sabe como é feita: amor


na quinta-essência da palavra, e mudo


de natural silêncio já não cabe


em tanto gesto de colher e amar






a nuvem que de ambígua se dilui


nesse objeto mais vago do que nuvem


e mais indefeso, corpo! Corpo, corpo, corpo






verdade tão final, sede tão vária


a esse cavalo solto pela cama


a passear o peito de quem ama.










(Tenho uma cópia manuscrita , com uma dedicatória : já prometi doar à Biblioteca Nacional !)

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Maneira de Bem Sonhar , de Fernando Pessoa

Adia tudo. Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar para amanhã.

Nem mesmo é necessário que se faça qualquer coisa, amanhã ou hoje.

Nunca penses no que vais fazer. Não o faças.

Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela.

Na verdade, e no erro, na dor e no bem estar, seja o teu próprio ser.

Só poderás fazer isso sonhando, porque a tua vida real,

a tua vida humana é aquela que não é tua, mas dos outros.

Assim, substituirás o sonho à vida e cuidarás apenas em que sonhes com perfeição.

Em todos os teus atos da vida real,

desde o de nascer até ao de morrer,

tu não ages: és agido;

tu não vives: és vivido apenas.





(Enviado pela leitora desse blog, Rachel Paschoal)

quinta-feira, 17 de maio de 2012

EU NÃO SINTO A SOLIDÃO , de Gabriela Mistral

É a noite desamparo


das montanhas ao oceano.


Porém eu, a que te ama,


eu não sinto a solidão.


É todo o céu desamparo,


mergulha a lua nas ondas.


Porém eu, a que te embala,


eu não sinto a solidão.


É o mundo desamparo,


triste a carne em abandono


Porém eu, a que te embala,


eu não sinto a solidão.

.

terça-feira, 15 de maio de 2012

PENSAR NELA , de Fernando Pessoa


Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,

E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.

E os pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,

E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.

Amar é pensar.

E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.

Não sei bem o que quero, mesmo dela,

E eu não penso senão nela.

Tenho uma grande distracção animada.

Quando desejo encontrá-la

Quase que prefiro não a encontrar,

Para não ter que a deixar depois.

Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.

Quero só pensar nela.

Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.



(”O Guardador de Rebanhos”, “Obra Completa”, Ed. Aguilar, 1960, pág. 312.)

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Ariel, de Silvia Plath




Estancamento no escuro.
Então um azul sem substância
De penhascos e distâncias.


Leoa de Deus,
Crescemos como tal,
Pivô de calcanhares e joelhos! - O sulco


Divide e passa, irmã do
Arco castanho
Do pescoço que não posso abraçar,


Olhos negros
Sementes forjam escuros
anzois...


Goles de sangue negro e doce,
Sombras.
Algo mais


Arrasta-me pelo ar -
Coxas, cabelos;
Lascas de meus calcanhares.


Branca
Godiva, descasco -
Mãos mortas, necessidades mortas.


E agora eu
Espuma ao trigo, um brilho de mares.
O choro da criança


Derrete-se na parede
E eu
Sou a flexa,


Orvalho que voa,
Suicida, que se lança
Dentro do vermelho


Olho, o caldeirão da manhã.


1

Soneto XXVIII, de Shakespeare




Busco, à noite, o meu leito, exausto da labuta,

pois é justo um repouso aos membros fatigados.
Nova jornada, entanto! É meu cérebro em luta
com o pensamento vivo, e os sonhos acordados.






Romaria ou vigília?... Eu sei que não me escuta
tão longe de onde estou, por mal dos meus pecados,
aquela por quem vivo. E o coração disputa
às estrelas do céu seus olhos encantados.






Bem abertas mantendo as pálpebras dormentes,
cego, na escuridão, sinto mais que os videntes
que falta em sua face a luz do mar que é puro.






Assim, de dia ao corpo, e de noite, à minha alma,
por que hão de me roubar ao espírito a calma
que esse amor não me deu porque foi tão perjuro?




(Tradução de Gomes Filho)

AS SEM RAZÕES DO AMOR, de Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 8 de maio de 2012

VIVER É CORRER RISCOS , de Kieerkegaard


Rir é arriscar-se a parecer louco.


Chorar é arriscar-se a parecer sentimental.






Estender a mão para o outro é arriscar-se a se envolver.


Expor seus sentimentos é arriscar-se a expor seu eu verdadeiro.






Amar é arriscar-se a não ser amado.


Expor suas idéias e sonhos ao público é arriscar-se a perder.






Viver é arriscar-se a morrer...


Ter esperança é arriscar-se a sofrer decepção.






Tentar é arriscar-se a falhar.


Mas... é preciso correr riscos.






Porque o maior azar da vida é não arriscar nada...


Pessoas que não arriscam, que nada fazem, nada são.






Podem estar evitando o sofrimento e a tristeza.


Mas assim não podem aprender, sentir, crescer, mudar, amar, viver...






Acorrentadas às suas atitudes, são escravas;


Abrem mão de sua liberdade.


Só a pessoa que se arrisca é livre...






Arriscar-se é perder o pé por algum tempo.


Não se arriscar é perder a vida...













terça-feira, 1 de maio de 2012

INTERVALO , de Fernando Pessoa


Quem te disse ao ouvido esse segredo


Que raras deusas têm escutado -


Aquele amor cheio de crença e medo


Que é verdadeiro só se é segredado?...


Quem te disse tão cedo?






Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.


Não foi um outro, porque não sabia.


Mas quem roçou da testa teu cabelo


E te disse ao ouvido o que sentia?


Seria alguém, seria?






Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?


Foi só qualquer ciúme meu de ti


Que o supôs dito, porque o não direi,


Que o supôs feito, porque o só fingi


Em sonhos que nem sei?






Seja o que for, quem foi que levemente,


A teu ouvido vagamente atento,


Te falou desse amor em mim presente


Mas que não passa do meu pensamento


Que anseia e que não sente?






Foi um desejo que, sem corpo ou boca,


A teus ouvidos de eu sonhar-te disse


A frase eterna, imerecida e louca -


A que as deusas esperam da ledice


Com que o Olimpo se apouca.






(in "Ficções do Interlúdio" , "Obra Completa" , Ed. Aguilar, 1962, pág. 312)