quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Fio, de Cecília Meirelles

No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.


Tu não vês o jogo perdendo-se
como as palavras de uma canção.


Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...


— Para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

A mulher que passa, de Vinicius de Moraes

Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!

Oh! como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontrava se te perdias?

Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida?
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!

No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como a cortiça
E tem raizes como a fumaça.

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segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Eterno, de Cecília Meirelles



Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

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Consolo na praia, de Carlos Drummond de Andrade

Vamos, não chores
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizaram.
Mas, e o humor?

("OBRA COMPLETA",ED. AGUILAR,1964, pag. 231)

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domingo, 25 de janeiro de 2009

Chove, de Fernando Pessoa

Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!
Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...
Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, estou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!

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sábado, 24 de janeiro de 2009

A vida é o dever..., de Mário Quinana

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira. ...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê, já se passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado.

Se me fosse dado, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca dourada e inútil das horas.

Desta forma, eu digo: não deixe de fazer algo de que gosta devido a falta de tempo;
a única falta que terá, será desse tempo que infelizmente nao voltará mais."

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Há momentos, de Clarice Lispector

Há momentos na vida em que sentimos tanto
a falta de alguém que o que mais queremos
é tirar esta pessoa de nossos sonhos
e abraçá-la.

Sonhe com aquilo que você quiser.
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que se quer.

Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.

As pessoas mais felizes
não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor
das oportunidades que aparecem
em seus caminhos.

A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem
a importância das pessoas que passam por suas vidas.

O futuro mais brilhante
é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida
quando perdoar os erros
e as decepções do passado.

A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar
duram uma eternidade.
A vida não é de se brincar
porque um belo dia se morre.

(Enviado por Ronaldo Derly Rodrigues, leitor desse blog)

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quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Canção de embalar, de W.H.Auden

Apoia a tua cabeça adormecida, amor,
Tão humana sobre o meu braço descrente;
O tempo e a febre consomem
A própria beleza das
Pensativas crianças, e o túmulo
Mostra que a criança é efémera:
Mas, nos meus braços, até ao romper do dia
Deixa que a viva criatura jaza
Mortal, culpada, mas que para mim
É toda a beleza.

A alma e o corpo não têm limites:
Para os amantes quando jazem
Sobre o seu permissivo e encantado declive
Num habitual desfalecimento,
Grave é a visão que Vénus envia
De uma sobrenatural compaixão;
Amor universal e esperança;
Entretanto, uma visão abstracta desperta
Entre os glaciares e as rochas
O êxtase carnal do eremita.

A segurança e a fidelidade
Passam ao bater da meia-noite
Como as vibrações de um sino
E aqueles que são e.legantes e loucos erguem
O seu pedante e enfadonho apelo:
A mais pequena moeda devida,
Tudo o que as temidas cartas auguram,
Há-de ser pago, mas desta noite
Nem um murmúrio, nem um pensamento,
Nem um beijo nem um olhar se hão-de perder.

A beleza, a meia-noite, a visão que morre;
Que os ventos da madrugada ao soprarem
Suaves em redor da tua cabeça sonhadora
Mostrem um dia de boas-vindas
Que o olhar e o coração palpitante abençoem,
Que achem suficiente o nosso mundo mortal;
Que meios-dias de aridez te encontrem alimentada
Por poderes involuntários,
Que noites de afronta te deixem passar
Vigiada por todos os amores humanos.


(W.H. Auden
DIZ-ME A VERDADE ACERCA DO AMOR
Tradução de Maria de Lourdes Guimarães
Relógio d´Água
1994)

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quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Liberdade, de Fernando Pessoa

Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

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Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

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terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Quero me casar, de Carlos Drummond de Andrade

Quero me casar
na noite na rua
no mar ou no céu
quero me casar.

Procuro uma noiva
loura morena
preta ou azul
uma noiva verde
uma noiva no ar
como um passarinho.

Depressa, que o amor
não pode esperar!



(Carlos Drummond de Andrade, in OBRAS COMPLETAS, ED. AGUILAR, 1964, pag.265)

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segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Coisas da Terra, de Ferreira Gullar


Todas as coisas de que falo estão na cidade
entre o céu e a terra.
São todas elas coisas perecíveis
e eternas como o teu riso
a palavra solidária
minha mão aberta
ou este esquecido cheiro de cabelo
que volta
e acende sua flama inesperada
no coração de maio.

Todas as coisas de que falo são de carne
como o verão e o salário.
Mortalmente inseridas no tempo,
estão dispersas como o ar
no mercado, nas oficinas,
nas ruas, nos hotéis de viagem.
São coisas, todas elas,
cotidianas, como bocas
e mãos, sonhos, greves,
denúncias,
acidentes de trabalho e do amor. Coisas,
de que falam os jornais,
às vezes tão rudes
às vezes tão escuras
que mesmo a poesia as ilumina com dificuldade.

Mas é nelas que te vejo pulsando,
mundo novo,
ainda em estado de soluços e esperança.

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Maneira de bem sonhar, de Fernando Pessoa

Adia tudo. Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar para amanhã.
Nem mesmo é necessário que se faça qualquer coisa, amanhã ou hoje.
Nunca penses no que vais fazer. Não o faças.
Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela.
Na verdade, e no erro, na dor e no bem estar, seja o teu próprio ser.
Só poderás fazer isso sonhando, porque a tua vida real,
a tua vida humana é aquela que não é tua, mas dos outros.
Assim, substituirás o sonho à vida e cuidarás apenas em que sonhes com perfeição.
Em todos os teus atos da vida real,
desde o de nascer até ao de morrer,
tu não ages: és agido;
tu não vives: és vivido apenas.


(Enviado pela leitora desse blog, Rachel Paschoal)

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domingo, 18 de janeiro de 2009

Sonhei, de Fernando Pessoa

Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,
Mas, quando dispertei da confusão,
Vi que esta vida aqui e este universo
Não são mais claros do que os sonhos são
Obscura luz paira onde estou converso
A esta realidade da ilusão
Se fecho os olhos, sou de novo imerso
Naquelas sombras que há na escuridão.

Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida,
É a mesma mistura de entre-seres
Ou na noite, ou ao dia transferida.

Nada é real, nada em seus vãos moveres
Pertence a uma forma definida,
Rastro visto de coisa só ouvida.


(28-9-1933)

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sábado, 17 de janeiro de 2009

Poema em linha reta, de Fernando Pessoa

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


(Como Álvaro de Campos )

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

A idéia, de Augusto dos Anjos

De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cal de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!

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quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

A novela inacabada, de Fernando Pessoa

A novela inacabada,
Que o meu sonho completou,
Não era de rei ou fada
Mas era de quem não sou.

Para além do que dizia
Dizia eu quem não era...
A Primavera floria
Sem que houvesse Primavera.

Lenda do sonho que vivo,
Perdida por a salvar...
Mas quem me arrancou o livro
Que eu quis ter sem acabar?

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quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Cantiga para não morrer, de Ferreira Gullar

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

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Cantiga para não morrer, de Ferreira Gular

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Namorados, de Manuel Bandeira

“O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:

- Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com a sua cara.

A moça olhou de lado e esperou.

- Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listada?

A moça se lembrava:

- A gente fica olhando...

A meninice brincou de novo nos olhos dela.

O rapaz prosseguiu com muita doçura:

- Antônia, você parece uma lagarta listada.

A moça arregalou os olhos, fez exclamações.

O rapaz concluiu:

- Antônia, você é engraçada. Você parece louca”.

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segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Talvez eu fosse feliz, de Fernando Pessoa

Minha alma sabe-me a antiga
Mas sou de minha lembrança,
Como um eco, uma cantiga.
Bem sei que isto não é nada,
Mas quem dera a alma que seja
O que isto é, como uma estrada.

Talvez eu fosse feliz
Se houvesse em mim o perdão
Do que isto quase que diz.

Porque o esforço é vil e vão,
A verdade, quem a quis ?
Escuta só meu coração.

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Talvez eu fosse feliz, de Fernando Pessoa


Minha alma sabe-me a antiga
Mas sou de minha lembrança,
Como um eco, uma cantiga.
Bem sei que isto não é nada,
Mas quem dera a alma que seja
O que isto é, como uma estrada.

Talvez eu fosse feliz
Se houvesse em mim o perdão
Do que isto quase que diz.

Porque o esforço é vil e vão,
A verdade, quem a quis ?
Escuta só meu coração.

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domingo, 11 de janeiro de 2009

O amor antigo, de Carlos Drummond de Andrade

O amor antigo vive de si mesmo
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino não nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

(OBRA COMPLETA, ED. AGUILAR,1964,"NOTÍCIAS AMOROSAS",pag.346)

Esta espécie de loucura, de Fernando Pessoa

Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
confusão do pensamento,
não me traz felicidade.
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há.

(Fernando Pessoa, em "Inéditas", OBRA COMPLETA, 1960, Ed. Aguilar, pag. 347)

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sábado, 10 de janeiro de 2009

Testamento, de Manuel Bandeira

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os...
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!



(Poesia extraída do livro "Antologia Poética - Manuel Bandeira", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 2001, pág. 126).

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sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Isto, de Fernando Pesoa

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.


Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!


(Fernando Pessoa em “Quando fui outro”, Ed. Alfaguara 2006, pág.38)

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quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Uma mulher pequena, de Franz Kafka

É uma mulher pequena; embora esbelta por natureza, anda muito espartilhada; vejo-a sempre com o mesmo vestido, de um tecido cinza amarelado meio cor de madeira e guarnecido de borlas ou pingentes em forma de botões do mesmo tom; está sempre sem chapéu, seu cabelo loiro desbotado é liso e mantém-se muito fofo, mas não desordenado. Apesar do espartilho seus movimentos são ágeis, naturalmente ela exagera essa mobilidade, gosta de conservar as mãos nos quadris e vira a parte superior do corpo para o lado com um arremesso surpreendentemente rápido. Só posso reproduzir a impressão que sua mão me causa se disser que nunca vi nenhuma em que os dedos estivessem tão nitidamente separados uns dos outros; mas a mão dela não tem nenhuma peculiaridade anatômica, é completamente normal.
Ora, essa mulherzinha está muito insatisfeita comigo, sempre tem algo a censurar em mim, diante dela estou sempre errado e irrito-a a cada passo; se fosse possível dividir a vida em partes mínimas e cada partícula pudesse ser julgada em separado, certamente qualquer pedacinho da minha vida seria um aborrecimento para ela. Já me perguntei várias vezes por que a exaspero tanto; pode ser que tudo em mim contrarie o seu sentido de beleza, o seu sentimento de justiça, os seus hábitos, as suas tradições, as suas esperanças; existem naturezas que se contradizem desse modo, mas por que ela sofre tanto com isso? Não há nenhuma relação entre nós que pudesse forçá-la a sofrer por minha causa. Ela só teria que se decidir a me ver como alguém completamente estranho, o que aliás sou: não me oporia a essa decisão, mas a receberia muito bem; ela teria apenas que se decidir a esquecer da minha existência, que eu por sinal nunca impus ou imporia a ela – e todo o sofrimento sem dúvida acabaria. Faço aqui inteira abstração de mim mesmo e do fato de que seu comportamento evidentemente também me é penoso; ponho isso de lado porque reconheço que todo esse padecimento não é nada em comparação com a sua dor. No entanto estou bem consciente de que não se trata de um sofrimento amoroso da sua parte; ela não tem o menor empenho em promover qualquer aprimoramento meu, tanto mais que tudo o que reprova em mim não é de natureza capaz de perturbar o meu progresso. Mas a minha evolução também não a preocupa; ela não se preocupa com outra coisa que não seja o seu interesse pessoal, isto é: vingar-se do tormento que provoco nela e impedir o tormento que, vindo de mim, a ameaça no futuro. Já tentei uma vez apontar-lhe o melhor caminho para pôr um fim a esse dissabor permanente, mas com isso levei-a a uma comoção tamanha que não repetirei mais a tentativa (...)



(KAFKA, Franz. Uma mulher pequena. In: Um artista da fome e A construção. Tradução:
Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Pag. 13)

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quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Annabel Lee, de Edgard Allan Poe (tradução de Fernando Pessoa)

Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.

Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor --
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.

E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.

Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.

Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.


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terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Lua adversa, de Cecília Meireles

Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
tenho fases, como a lua)

No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

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Loura ou morena, de Vinicius de Moraes

Se por acaso o amor me agarrar
Quero uma loira para namorar
Corpo bem feito, magro e perfeito
E o azul do céu no olhar
Quero também que saiba dançar
Que seja clara como o luar
Se isso se der
Posso dizer que amo uma mulher
Mas se uma loura eu não encontrar
Uma morena é o tom
Uma pequena, linda morena
Meu Deus, que bom
Uma morena era o ideal
Mas a loirinha não era mau
Cabelo louro vale um tesouro
É um tipo fenomenal
Cabelos negros têm seu lugar
Pele morena convida a amar
Que vou fazer?
Ah, eu não sei como é que vai ser...
Olho as mulheres, que desespero
Que desespero de amor
É a loirinha, é a moreninha
Meu Deus, que horror!
Se da morena vou me lembrar
Logo na loura fico a pensar
Louras, morenas
Eu quero apenas a todas glorificar
Sou bem constante no amor leal
Louras, morenas, sois o ideal
Haja o que houver
Eu amo em todas somente a mulher.

(No site oficial www.viniciusdemoraes.com.br , enviado por Ronaldo Derly Rodrigues, leitor desse blog)

domingo, 4 de janeiro de 2009

Lenda do Pégaso, de Jorge Mautner

Era uma vez, vejam vocês, um passarinho feio
Que não sabia o que era, nem de onde veio
Então vivia, vivia a sonhar em ser o que não era
Voando, voando com as asas, asas da quimera
Sonhava ser uma gaivota porque ela é linda e todo mundo nota
E naquela pretensão queria ser um gavião
E quando estava feliz queria ser a misteriosa perdiz
E vejam então que vergonha quando quis ser a sagrada cegonha



E com a vontade esparsa sonhava ser uma linda garça
E num instante de desengano queria apenas ser um tucano
E foi aquele, aquele tititi quando quis ser um colibri
Por isso lhe pisaram o calo aí então cantou de galo
Sonhava com a casa de barro, a do João de Barro e ficava triste
Tão triste assim como tu querendo ser o sinistro urubu
E quando queria causar estorvo então imitava o sombrio corvo

E até hoje ainda se discute se é mesmo verdade que virou abutre

E quando já estava querendo aquela paz dos sabiás
Cansado de viver na sombra, voar, revoar feito a linda pomba
E ao sentir a falta de um grande carinho, então cansava feito um passarinho
E assim o passarinho feio quis ser até o pombo-correio
Aí então Deus chegou e disse: "Pegue as mágoas
Pegue as mágoas e apague-as, tenha o orgulho das águias"
Deus disse ainda: "é tudo azul", e o passarinho feio virou cavalo voador
Esse tal de pégaso
Pégaso, Pégaso, Pégaso, Pégaso
Pega o azul, pega o azul

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Bom dia tristeza, atribuída a Vinicius de Moraes

Bom dia, tristeza,
Que tarde, tristeza.

Você, veio hoje, me ver.
Já estava ficando,
Até meio triste,
De estar tanto tempo,
Longe de você.

Se chegue tristeza,
Se sente comigo,
Aqui nesta mesa de bar.

Beba do meu copo,
Me dê o seu ombro,
Que é para eu chorar.
Chorar de tristeza,
Tristeza de amar.

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