quarta-feira, 10 de outubro de 2012

SONETO XXV , de Pablo Neruda




Antes de amar-te, amor, nada era meu
Vacilei pelas ruas e as coisas:
Nada contava nem tinha nome:
O mundo era do ar que esperava.
E conheci salões cinzentos,
Túneis habitados pela lua,
Hangares cruéis que se despediam,
Perguntas que insistiam na areia.
Tudo estava vazio, morto e mudo,
Caído, abandonado e decaído,
Tudo era inalienavelmente alheio,
Tudo era dos outros e de ninguém,
Até que tua beleza e tua pobreza.





("Poemas avulso", Ed. Civilização Brasileira, 1974, pág. 11)


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segunda-feira, 8 de outubro de 2012

FALAR COM SINCERIDADE , reflexões de Fernando Pessoa

Quando Falo com Sinceridade não sei com que Sinceridade Falo
Não sei quem sou, que alma tenho. 
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou váriamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). 
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpétuamente me ponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. 
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. 
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço. 




( in 'Para a Explicação da Heteronímia')
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EU TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO , de Carlos Drummond de Andrade







Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.

Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isso, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não. 



("Antologia Poética", Cia. das Letras, 2009)



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domingo, 7 de outubro de 2012

QUARTO MOTIVO DA ROSA , de Cecilia Meireles




Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.


Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.


Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.


E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.




("Antologia Poética", "Mar Absoluto", Ed. Nova Fronteira, 2008)

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sexta-feira, 5 de outubro de 2012

RIQUEZA ? , de Manoel de Barros



A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito. 

Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, 
que puxa válvulas, que olha o relógio, 
que compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis, 
que vê a uva etc. etc. 


Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.








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RETRATO ARDENTE, de Eugénio de Andrade




Entre os teus lábios 
é que a loucura acode, 
desce à garganta, 
invade a água.
No teu peito 
é que o pólen do fogo 
se junta à nascente, 
alastra na sombra.
Nos teus flancos 
é que a fonte começa 
a ser rio de abelhas, 
rumor de tigre.
Da cintura aos joelhos 
é que a areia queima, 
o sol é secreto, 
cego o silêncio.
Deita-te comigo. 
Ilumina meus vidros. 
Entre lábios e lábios 
toda a música é minha

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quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A SUTILEZA DA VIDA , da minha amiga Maria José Maldonado



Minha voz não encontra eco
no que me supus.
E procuro ver-me na distância
a que ficou minha alegria.
Resquícios do sol de amor
ou substância risível do sonho?

Impossível é esse estar na vida
ouvindo os passos da morte.
É este vácuo de não ser.
Este poente a esvair-se.
Este grotesco envelhecimento
Da matéria.
Este cansaço do pensamento
em término de linha...

- A sutileza da vida
na advertência do fim-

Mas há dias ensolarados
em que a procura da nova identidade
persiste através de todos os desvios;
de todos os desânimos;
de todas as mortes da alma.
A poesia é a mensagem da esperança.
Substância essencial que me dá vida
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quarta-feira, 3 de outubro de 2012

EU , de Florbela Espanca





Eu sou a que no mundo anda perdida,

Eu sou a que na vida não tem norte,

Sou a irmã do Sonho, e desta sorte

Sou a crucificada ... a dolorida ...



Sombra de névoa ténue e esvaecida,

E que o destino amargo, triste e forte,

Impele brutalmente para a morte!

Alma de luto sempre incompreendida!...



Sou aquela que passa e ninguém vê...

Sou a que chamam triste sem o ser...

Sou a que chora sem saber por quê...



Sou talvez a visão que alguém sonhou.

Alguém que veio ao mundo pra me ver...

terça-feira, 2 de outubro de 2012

A BELA ADORMECIDA, de Adélia Prado



Estou alegre e o motivo

beira secretamente à humilhação,

porque aos 50 anos (?)

não posso mais fazer curso de dança,

escolher profissão,

aprender a nadar como se deve.

No entanto, não sei se é por causa das águas,

deste ar que desentoca do chão as formigas aladas,

ou se é por causa dele que volta

e põe tudo arcaico, como a matéria da alma,

se você vai ao pasto,

se você olha o céu,

aquelas frutinhas travosas,

aquela estrelinha nova,

sabe que nada mudou.

O pai está vivo e tosse,

a mãe pragueja sem raiva na cozinha.

Assim que escurecer vou namorar.

Que mundo ordenado e bom!

Namorar quem?

Minha alma nasceu desposada

com um marido invisível.

Quando ele fala roreja

quando ele vem eu sei,

porque as hastes se inclinam.

Eu fico tão atenta que adormeço

a cada ano mais.

Sob juramento lhes digo:

tenho 18 anos. Incompletos.


(Sinto falta quando deixo de ler Adélia ! Imperdoável !!!)