segunda-feira, 4 de abril de 2011

Poesia nos textos simples, postado por Affonso Romano de Sant'ana

Como desentranhar poesia de textos aparentemente simples?

Levo para o curso COMO LER POESIA, o poema de Eduardo Alves da Costa " No caminho com Maiakovsky". O poema é longo, mas a sua parte mais conhecida, é assim:


Na primeira noite/ eles se aproximam/ e roubam uma flor/ de nosso jardim./ E não dizemos nada./ Na segunda noite,/ já não se escondem:/ pisam as flores,/ matam nosso cão,/ e não dizemos nada. / Até que um dia,/o mais frágil deles/ entra sozinho em nossa casa,/ rouba-nos a luz,/ e, conhecendo nosso medo,/ arranca-nos a voz da garganta./ E já não podemos nada.

Alguém pode duvidar se este texto é poesia, pois não tem rimas. Os versos, no entanto, têm ritmo embora não tão regulares como num soneto. Mas onde a poesia?

Uma das característica da poesia é a repetição . E esse texto, tem várias, num crescendo. Mas além deste dado formal, há algo quanto ao conteúdo: o texto é uma parábola. Como os mitos, as parábolas fazem alusão, tratam indiretamente um assunto, tangem, como a poesia, o imponderável. E essa parábola, apresentada ritmicamente, deixa ao leitor o preenchimento de significados. De que se trata? De uma referência a regimes totalitários? À violência cotidiana? À invasão da privacidade na sociedade atual?

Vejamos o texto mais de perto.

-Quem são esses "eles" que surgem logo no princípio? A primeira frase é muito informativa e dramática: " Na primeira noite eles se aproximam". Há uma oposição entre "eles" e "nós" ( lugar onde está o leitor). Constrói-se uma narrativa temporal ( sintética): pois à "primeira" sucede agora a "segunda" noite de tensão. E houve um avanço dos agressores, pois eles " já não se escondem". portanto, aumentou a ameaça.

Há um crescendo trágico: evidencia-se a impotência do "eu" diante "deles". A agressividade vinda de fora é maior: "não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão". Como a dizer que na primeira noite nós não vimos claramente a ameaça, mas na segunda, vemos, somos testemunhas, "in presencia" . Não apenas "pisam", "matam" ( houve uma progressão nesses verbos), ultrapassam o jardim onde está a nossa guarda: "o cão". E como as barreiras vão caindo, aquela frase que era anteriormente separada por um ponto "E não dizemos nada", na segunda repetição é separada por uma vírgula, como se esse "e não dizemos nada" virasse um hábito, uma consequência. A violência fica sintaticamente mais evidente. Da tensão do primeiro para o segundo dia, chega-se a "um dia" não determinado, mas pateticamente esperado.

Aí, a expressão "o mais frágil deles" - aumenta a humilhação do confronto. Não é apenas o desconhecido ou violento, que mata, senão "o mais frágil deles". Não apenas o mais frágil, mas alguém que "entra sozinho", e mais- "em nossa casa". Ou seja, ele veio do exterior, esmagou a flor do jardim, matou o cão que nos protegia e está dentro da nossa casa, na nossa outrora indevassável intimidade.

Reféns e imobilizados, estamos. O mais frágil avança: "rouba-nos a luz". Vejam, ele não "apaga", não " desliga", ele "rouba" e isto é mais violento, pois não "tira" apenas, mas se "apodera" de algo que é nosso e vital- a "luz", que pode ter vários significados: vida, consciência, capacidade de localizar-se, de ser e estar.

E como se isto não bastasse, aquele que veio pelo jardim pisando flores, matando o cão, apagando a luz, agora invade nosso corpo e num gesto de progressiva violência "arranca-nos a voz da garganta". A expressão é bastante visual, é física com a presença da "garganta" violada e a sensação de pânico e dor.

E o poema termina inclementemente trágico: "E já não podemos nada".

Dito isto o leitor é abandonado em sua impotente solidão.


(Agradeço a Ronaldo Derly Rodrigues)

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Poema da Amiga, de Mário de Andrade

A tarde se deitava nos meus olhos
E a fuga da hora me entregava abril,
Um sabor familiar de até-logo criava
Um ar, e, não sei porque, te percebi.


Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.
Estavas longe doce amiga e só vi no perfil da cidade
O arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa,
Mexendo asas azuis dentro da tarde.


Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus amigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.


Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.


No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.


Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia
Sereia.


O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...


Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...


As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

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