quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Uma mulher pequena, de Franz Kafka

É uma mulher pequena; embora esbelta por natureza, anda muito espartilhada; vejo-a sempre com o mesmo vestido, de um tecido cinza amarelado meio cor de madeira e guarnecido de borlas ou pingentes em forma de botões do mesmo tom; está sempre sem chapéu, seu cabelo loiro desbotado é liso e mantém-se muito fofo, mas não desordenado. Apesar do espartilho seus movimentos são ágeis, naturalmente ela exagera essa mobilidade, gosta de conservar as mãos nos quadris e vira a parte superior do corpo para o lado com um arremesso surpreendentemente rápido. Só posso reproduzir a impressão que sua mão me causa se disser que nunca vi nenhuma em que os dedos estivessem tão nitidamente separados uns dos outros; mas a mão dela não tem nenhuma peculiaridade anatômica, é completamente normal.
Ora, essa mulherzinha está muito insatisfeita comigo, sempre tem algo a censurar em mim, diante dela estou sempre errado e irrito-a a cada passo; se fosse possível dividir a vida em partes mínimas e cada partícula pudesse ser julgada em separado, certamente qualquer pedacinho da minha vida seria um aborrecimento para ela. Já me perguntei várias vezes por que a exaspero tanto; pode ser que tudo em mim contrarie o seu sentido de beleza, o seu sentimento de justiça, os seus hábitos, as suas tradições, as suas esperanças; existem naturezas que se contradizem desse modo, mas por que ela sofre tanto com isso? Não há nenhuma relação entre nós que pudesse forçá-la a sofrer por minha causa. Ela só teria que se decidir a me ver como alguém completamente estranho, o que aliás sou: não me oporia a essa decisão, mas a receberia muito bem; ela teria apenas que se decidir a esquecer da minha existência, que eu por sinal nunca impus ou imporia a ela – e todo o sofrimento sem dúvida acabaria. Faço aqui inteira abstração de mim mesmo e do fato de que seu comportamento evidentemente também me é penoso; ponho isso de lado porque reconheço que todo esse padecimento não é nada em comparação com a sua dor. No entanto estou bem consciente de que não se trata de um sofrimento amoroso da sua parte; ela não tem o menor empenho em promover qualquer aprimoramento meu, tanto mais que tudo o que reprova em mim não é de natureza capaz de perturbar o meu progresso. Mas a minha evolução também não a preocupa; ela não se preocupa com outra coisa que não seja o seu interesse pessoal, isto é: vingar-se do tormento que provoco nela e impedir o tormento que, vindo de mim, a ameaça no futuro. Já tentei uma vez apontar-lhe o melhor caminho para pôr um fim a esse dissabor permanente, mas com isso levei-a a uma comoção tamanha que não repetirei mais a tentativa (...)



(KAFKA, Franz. Uma mulher pequena. In: Um artista da fome e A construção. Tradução:
Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Pag. 13)

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