Todo poema é feito de ar
apenas:
a mão do poeta
não rasga a madeira
não fere
o metal
a pedra
não tinge de azul
os dedos
quando escreve manhã
ou brisa
ou blusa
de mulher.
O poema
é sem matéria palpável
tudo
o que há nele
é barulho
quando rumoreja
ao sopro da leitura.
.
Pretendo com este modesto blog compartilhar com os amigos as minhas algumas criações e estimular a leitura de grandes obras de arte, comentários sobre museus e viagens, restaurantes e uma série de coisas boas. Garanto que você vai gostar, mais ou menos, mas vai !
terça-feira, 24 de fevereiro de 2009
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009
Estrada do sol, de Tom Jobim
É de manhã
Vem o sol
Mas os pingos da chuva
Que ontem caíram
Ainda estão a brilhar
Ainda estão da dançar
Ao vento alegre
Que me traz esta canção
Quero que você
Me dê a mão
Vamos sair por aí
Sem pensar
No que foi que sonhei
Que chorei, que sofri
Pois a nova manhã
Já me fez esquecer
Me dê a mão
Vamos sair pra ver o sol
.
Vem o sol
Mas os pingos da chuva
Que ontem caíram
Ainda estão a brilhar
Ainda estão da dançar
Ao vento alegre
Que me traz esta canção
Quero que você
Me dê a mão
Vamos sair por aí
Sem pensar
No que foi que sonhei
Que chorei, que sofri
Pois a nova manhã
Já me fez esquecer
Me dê a mão
Vamos sair pra ver o sol
.
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009
Bandeira branca, de Laércio Alves
(UM CARNAVAL DE MUITAS BRICADEIRAS E ALEGRIA, SÃO OS MEUS VOTOS)
Bandeira branca, amor
Não posso mais.
Pela saudade
Que me invade eu peço paz.
Bandeira branca, amor
Não posso mais.
Pela saudade
Que me invade eu peço paz.
Saudade, mal de amor, de amor
Saudade, dor que dói demais
Vem, meu amor
Bandeira branca eu peço paz.
Bandeira branca, amor
Não posso mais.
Pela saudade
Que me invade eu peço paz.
Bandeira branca, amor
Não posso mais.
Pela saudade
Que me invade eu peço paz.
.
Bandeira branca, amor
Não posso mais.
Pela saudade
Que me invade eu peço paz.
Bandeira branca, amor
Não posso mais.
Pela saudade
Que me invade eu peço paz.
Saudade, mal de amor, de amor
Saudade, dor que dói demais
Vem, meu amor
Bandeira branca eu peço paz.
Bandeira branca, amor
Não posso mais.
Pela saudade
Que me invade eu peço paz.
Bandeira branca, amor
Não posso mais.
Pela saudade
Que me invade eu peço paz.
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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009
Os limites do amor, de Affonso Romano de Sant'Ana
Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.
O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, em empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:
- ilimitado o amor às vezes se limita,
proibido é que o amor às vezes se liberta.
.
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.
O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, em empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:
- ilimitado o amor às vezes se limita,
proibido é que o amor às vezes se liberta.
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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009
Se alguém bater ..., de Fernando Pessoa
Se alguém bater um dia à tua porta,
Dizendo que é um emissário meu,
Não acredites, nem que seja eu;
Que o meu vaidoso orgulho não comporta
Bater sequer à porta irreal do céu.
Mas se, naturalmente, e sem ouvir
Alguém bater, fores a porta abrir
E encontrares alguém como que à espera
De ousar bater, medita um pouco. Esse era
Meu emissário e eu e o que comporta
O meu orgulho do que desespera.
Abre a quem não bater à tua porta!”.
(5-9-1934)
.
Dizendo que é um emissário meu,
Não acredites, nem que seja eu;
Que o meu vaidoso orgulho não comporta
Bater sequer à porta irreal do céu.
Mas se, naturalmente, e sem ouvir
Alguém bater, fores a porta abrir
E encontrares alguém como que à espera
De ousar bater, medita um pouco. Esse era
Meu emissário e eu e o que comporta
O meu orgulho do que desespera.
Abre a quem não bater à tua porta!”.
(5-9-1934)
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terça-feira, 17 de fevereiro de 2009
Corra e olhe o céu, de Cartola e Dalmo Casteli
Linda!
Te sinto mais bela
E fico na espera
Me sinto tão só
Mas!
O tempo que passa
Em dor maior
Bem maior...
Linda!
No que se apresenta
O triste se ausenta
Fez-se a alegria
Corra e olhe o céu
Que o sol vem trazer
Bom dia
Aaai!
Corra e olhe o céu
Que o sol vem trazer
Bom dia...
Linda!
Te sinto mais bela
Te fico na espera
Me sinto tão só
Mas!
O tempo que passa
Em dor maior
Bem maior...
Linda!
No que se apresenta
O triste se ausenta
Fez-se a alegria
Corra e olhe o céu
Que o sol vem trazer
Bom dia
Aaai!
Corra e olhe o céu
Que o sol vem trazer
Bom dia...
.
Te sinto mais bela
E fico na espera
Me sinto tão só
Mas!
O tempo que passa
Em dor maior
Bem maior...
Linda!
No que se apresenta
O triste se ausenta
Fez-se a alegria
Corra e olhe o céu
Que o sol vem trazer
Bom dia
Aaai!
Corra e olhe o céu
Que o sol vem trazer
Bom dia...
Linda!
Te sinto mais bela
Te fico na espera
Me sinto tão só
Mas!
O tempo que passa
Em dor maior
Bem maior...
Linda!
No que se apresenta
O triste se ausenta
Fez-se a alegria
Corra e olhe o céu
Que o sol vem trazer
Bom dia
Aaai!
Corra e olhe o céu
Que o sol vem trazer
Bom dia...
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segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
Soneto do Orfeu, de Vinicius de Moraes
São demais os perigos dessa vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida
E se ao luar, que atua desvairado
Vem unir-se uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher
Uma mulher que é feita de música
Luar e sentimento, e que a vida
Não quer, de tão perfeita
Uma mulher que é como a própria lua:
Tão linda que só espalha sofrimento,
Tão cheia de pudor que vive nua.
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Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida
E se ao luar, que atua desvairado
Vem unir-se uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher
Uma mulher que é feita de música
Luar e sentimento, e que a vida
Não quer, de tão perfeita
Uma mulher que é como a própria lua:
Tão linda que só espalha sofrimento,
Tão cheia de pudor que vive nua.
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sábado, 14 de fevereiro de 2009
Ao Diretor do Imposto de Renda, de Paulo Mendes Campos.
Ilmo. Sr. Diretor do Imposto de Renda.
Antes de tudo devo declarar que já estou, parceladamente, à venda.
Não sou rico nem pobre, como o Brasil, que também precisa de boa parte do meu dinheirinho.
Pago imposto de renda na fonte e no pelourinho.
Marchei em colégio interno durante seis anos mas nunca cheguei ao fim de nada, a não ser dos meus enganos.
Fui caixeiro. Fui redator. Fui bibliotecário.
Fui roteirista e vilão de cinema. Fui pegador de operário.
Já estive, sem diagnóstico, bem doente.
Fui acabando confuso e autocomplacente.
Deixei o futebol por causa do joelho.
Viver foi virando dever e entrei aos poucos no vermelho.
No Rio, que eu amava, o saldo devedor já há algum tempo que supera o saldo do meu amor.
Não posso beber tanto quanto mereço, pela fadiga do fígado e a contusão do preço.
Sou órfão de mãe excelente.
Outras doces amigas morreram de repente.
Não sei cantar. Não sei dançar.
A morte há de me dar o que fazer até chegar.
Uma vez quis viver em Paris até o fim, mas não sei grego nem latim.
Acho que devia ter estudado anatomia patológica ou pelo menos anatomia filológica.
Escrevo aos trancos e sem querer e há contudo orgulhos humilhantes no meu ser.
Será do avesso dos meus traços que faço o meu retrato?
Sou um insensato a buscar o concreto no abstrato.
Minha cosmovisão é míope, baça, impura, mas nada odiei, a não ser a injustiça e a impostura.
Não bebi os vinhos crespos que desejara, não me deitei sobre os sossegos verdes que acalentara.
Sou um narciso malcontente da minha imagem e jamais deixei de saber que vou de torna-viagem.
Não acredito nos relógios… the pule cast of throught… sou o que não sou (all that I am I am not).
Podia ter sido talvez um bom corredor de distância: correr até morrer era a euforia da minha infância.
O medo do inferno torceu as raízes gregas do meu psiquismo e só vi que as mãos prolongam a cabeça quando me perdera no egotismo.
Não creio contudo em myself.
Nem creio mais que possa revelar-me em other self.
Não soube buscar (em que céu?) o peso leve dos anjos e da divina medida.
Sou o próprio síndico de minha massa falida.
Não amei com suficiência o espaço e a cor.
Comi muita terra antes de abrir-me à flor.
Gosto dos peixes da Noruega, do caviar russo, das uvas de outra terra; meus amores pela minha são legião, mas vivem em guerra.
Fatigante é o ofício para quem oscila entre ferir e remir.
A onça montou em mim sem dizer aonde queria ir.
A burocracia e o barulho do mercado me exasperam num instante.
Decerto sou crucificado por ter amado mal meu semelhante.
Algum deus em mim persiste
mas não soube decidir entre a lua que vemos e a lua que existe.
Lobisomem, sou arrogante às sextas-feiras, menos quando é lua cheia.
Persistirá talvez também, ao rumor da tormenta, algum canto da sereia.
Deixei de subir ao que me faz falta, mas não por virtude: meu ouvido é fino e dói à menor mudança de altitude.
Não sei muito dos modernos e tenho receios da caverna de Platão: vivo num mundo de mentiras captadas pela minha televisão.
Jamais compreendi os estatutos da mente.
O mundo não é divertido, afortunadamente.
E mesmo o desengano talvez seja um engano.
.
Antes de tudo devo declarar que já estou, parceladamente, à venda.
Não sou rico nem pobre, como o Brasil, que também precisa de boa parte do meu dinheirinho.
Pago imposto de renda na fonte e no pelourinho.
Marchei em colégio interno durante seis anos mas nunca cheguei ao fim de nada, a não ser dos meus enganos.
Fui caixeiro. Fui redator. Fui bibliotecário.
Fui roteirista e vilão de cinema. Fui pegador de operário.
Já estive, sem diagnóstico, bem doente.
Fui acabando confuso e autocomplacente.
Deixei o futebol por causa do joelho.
Viver foi virando dever e entrei aos poucos no vermelho.
No Rio, que eu amava, o saldo devedor já há algum tempo que supera o saldo do meu amor.
Não posso beber tanto quanto mereço, pela fadiga do fígado e a contusão do preço.
Sou órfão de mãe excelente.
Outras doces amigas morreram de repente.
Não sei cantar. Não sei dançar.
A morte há de me dar o que fazer até chegar.
Uma vez quis viver em Paris até o fim, mas não sei grego nem latim.
Acho que devia ter estudado anatomia patológica ou pelo menos anatomia filológica.
Escrevo aos trancos e sem querer e há contudo orgulhos humilhantes no meu ser.
Será do avesso dos meus traços que faço o meu retrato?
Sou um insensato a buscar o concreto no abstrato.
Minha cosmovisão é míope, baça, impura, mas nada odiei, a não ser a injustiça e a impostura.
Não bebi os vinhos crespos que desejara, não me deitei sobre os sossegos verdes que acalentara.
Sou um narciso malcontente da minha imagem e jamais deixei de saber que vou de torna-viagem.
Não acredito nos relógios… the pule cast of throught… sou o que não sou (all that I am I am not).
Podia ter sido talvez um bom corredor de distância: correr até morrer era a euforia da minha infância.
O medo do inferno torceu as raízes gregas do meu psiquismo e só vi que as mãos prolongam a cabeça quando me perdera no egotismo.
Não creio contudo em myself.
Nem creio mais que possa revelar-me em other self.
Não soube buscar (em que céu?) o peso leve dos anjos e da divina medida.
Sou o próprio síndico de minha massa falida.
Não amei com suficiência o espaço e a cor.
Comi muita terra antes de abrir-me à flor.
Gosto dos peixes da Noruega, do caviar russo, das uvas de outra terra; meus amores pela minha são legião, mas vivem em guerra.
Fatigante é o ofício para quem oscila entre ferir e remir.
A onça montou em mim sem dizer aonde queria ir.
A burocracia e o barulho do mercado me exasperam num instante.
Decerto sou crucificado por ter amado mal meu semelhante.
Algum deus em mim persiste
mas não soube decidir entre a lua que vemos e a lua que existe.
Lobisomem, sou arrogante às sextas-feiras, menos quando é lua cheia.
Persistirá talvez também, ao rumor da tormenta, algum canto da sereia.
Deixei de subir ao que me faz falta, mas não por virtude: meu ouvido é fino e dói à menor mudança de altitude.
Não sei muito dos modernos e tenho receios da caverna de Platão: vivo num mundo de mentiras captadas pela minha televisão.
Jamais compreendi os estatutos da mente.
O mundo não é divertido, afortunadamente.
E mesmo o desengano talvez seja um engano.
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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009
Mulher e gata, de Paul-Marie Verlaine
Ela brincava com a gata
E era admirável ver as duas,
A branca mão e a branca pata,
Brincando à noite, na penumbra.
Ela escondia –a celerada!-
Sob as milenes de fio escuro
As assassinas unhas de ágata
Claras, cortantes, como um lume.
Fingia-se a outra adoçada
E retraía a garra afiada,
Mas o diabo nada perdia...
E no toucador retinia
O som de aéreas gargalhadas
E quatro pontos fosforesciam.
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E era admirável ver as duas,
A branca mão e a branca pata,
Brincando à noite, na penumbra.
Ela escondia –a celerada!-
Sob as milenes de fio escuro
As assassinas unhas de ágata
Claras, cortantes, como um lume.
Fingia-se a outra adoçada
E retraía a garra afiada,
Mas o diabo nada perdia...
E no toucador retinia
O som de aéreas gargalhadas
E quatro pontos fosforesciam.
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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
Blues fúnebre, de W.H. Alden
Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Impeçam o cão de latir com um osso enorme,
Silenciem os pianos e ao som abafado dos tambores
Tragam o caixão, deixem as carpideiras carpir suas dores.
Deixem os aviões aos círculos a gemer no céu
Rabiscando no ar a mensagem Ele Morreu,
Ponham laços crepe nas pombas brancas da nação,
Deixem os sinaleiros usar luvas pretas de algodão.
Ele era o meu Norte, meu Sul, meu Este e Oeste,
Minha semana de trabalho, meu Domingo de festa
Meu meio-dia, meia-noite, minha conversa, minha canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: foi ilusão.
As estrelas já não são precisas: levem-nas uma a uma;
Desmantelem o sol e empacotem a lua;
Despejem o oceano e varram a floresta;
Porque agora já nada de bom me resta.
(1936)
.
Impeçam o cão de latir com um osso enorme,
Silenciem os pianos e ao som abafado dos tambores
Tragam o caixão, deixem as carpideiras carpir suas dores.
Deixem os aviões aos círculos a gemer no céu
Rabiscando no ar a mensagem Ele Morreu,
Ponham laços crepe nas pombas brancas da nação,
Deixem os sinaleiros usar luvas pretas de algodão.
Ele era o meu Norte, meu Sul, meu Este e Oeste,
Minha semana de trabalho, meu Domingo de festa
Meu meio-dia, meia-noite, minha conversa, minha canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: foi ilusão.
As estrelas já não são precisas: levem-nas uma a uma;
Desmantelem o sol e empacotem a lua;
Despejem o oceano e varram a floresta;
Porque agora já nada de bom me resta.
(1936)
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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009
Sossega Coração, de Fernando Pessoa
Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperença a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
(in "Ficções do Interlúdio" , "Obra Poética", Ed. Aguilar, 1960, pág.183 , em 02 de agosto de 1933)
terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
Epitáfio, de meu amigo, sempre lembrado, Paulo Mendes Campos
Se a treva fui, por pouco fui feliz.
Se acorrentou-me o corpo, eu o quis.
Se Deus foi a doença, fui saúde.
Se Deus foi o meu bem, fiz o que pude.
Se a luz era visível, me enganei.
Se eu era o só, o só então amei.
Se Deus era a mudez, ouvi alguém.
Se o tempo era o meu fim, fui muito além.
Se Deus era de pedra, em vão sofri.
Se o bem foi nada, o mal foi um momento.
Se fui sem ir nem ser, fiquei aqui.
Para que me reflitas e me fites
estas turvas pupilas de cimento:
se devo a vida à morte, estamos quites.
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Se acorrentou-me o corpo, eu o quis.
Se Deus foi a doença, fui saúde.
Se Deus foi o meu bem, fiz o que pude.
Se a luz era visível, me enganei.
Se eu era o só, o só então amei.
Se Deus era a mudez, ouvi alguém.
Se o tempo era o meu fim, fui muito além.
Se Deus era de pedra, em vão sofri.
Se o bem foi nada, o mal foi um momento.
Se fui sem ir nem ser, fiquei aqui.
Para que me reflitas e me fites
estas turvas pupilas de cimento:
se devo a vida à morte, estamos quites.
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segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009
Intervalo, de Fernando Pessoa
Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado -
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?
Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?
Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?
Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?
Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca -
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.
.
Que raras deusas têm escutado -
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?
Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?
Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?
Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?
Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca -
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.
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sábado, 7 de fevereiro de 2009
Ontem, de Carlos Drummond de Andrade
ATÉ hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.
De como este banco
não reteve forma,
côr ou lembrança.
Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.
Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado
não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.
(OBRA COMPLETA / A ROSA DO POVO. ED. AGUILAR,1964, pag.154)
.
ante o que murchou
e não eram pétalas.
De como este banco
não reteve forma,
côr ou lembrança.
Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.
Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado
não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.
(OBRA COMPLETA / A ROSA DO POVO. ED. AGUILAR,1964, pag.154)
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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009
O haver, de Vinicius de Moraes
Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
– Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.
Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.
Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história...
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.
Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante
E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...
Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.
(in "Poesia completa e prosa: "Poesias coligidas")
Colaboração de Ronaldo Derly Rodrigues
.
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
– Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.
Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.
Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história...
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.
Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante
E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...
Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.
(in "Poesia completa e prosa: "Poesias coligidas")
Colaboração de Ronaldo Derly Rodrigues
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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009
Assombros, de Affonso Romano de Sant'Ana
Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.
Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.
Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.
Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.
(Em "Lado Esquerdo do Meu Peito")
.
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.
Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.
Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.
Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.
(Em "Lado Esquerdo do Meu Peito")
.
terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
Embriague-se, de Charles Beaudelaire
Devemos andar sempre bêbados.
Tudo se resume nisto: é a única solução.
Para não sentires o tremendo fardo do tempo que te despedaça os ombros e te verga para a terra, deves embriagar-te sem cessar.
Mas com quê?
Com vinho, com poesia ou com a virtude, a teu gosto.
Mas embriaga-te.
E se alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre as verdes ervas duma vala,
na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez já atenuada ou desaparecida,
pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que se passou, a tudo o que gemeu,
a tudo o que gira, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhes que horas são:
“São horas de te embriagares!”.
Para não seres como os escravos martirizados do tempo, embriaga-te, embriaga-te sem cessar!
Com vinho, com poesia, ou com a virtude, a teu gosto.
(Livre tradução por mim, portanto, releve alguma coisa.)
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Tudo se resume nisto: é a única solução.
Para não sentires o tremendo fardo do tempo que te despedaça os ombros e te verga para a terra, deves embriagar-te sem cessar.
Mas com quê?
Com vinho, com poesia ou com a virtude, a teu gosto.
Mas embriaga-te.
E se alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre as verdes ervas duma vala,
na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez já atenuada ou desaparecida,
pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que se passou, a tudo o que gemeu,
a tudo o que gira, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhes que horas são:
“São horas de te embriagares!”.
Para não seres como os escravos martirizados do tempo, embriaga-te, embriaga-te sem cessar!
Com vinho, com poesia, ou com a virtude, a teu gosto.
(Livre tradução por mim, portanto, releve alguma coisa.)
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