Pensei que fosse coincidência. Sempre que descia à garagem, ela estava por ali, aparentemente à espera de alguém. Com o tempo, passei a cumprimentá-la.
Num dia de chuva, ofereci carona. Ela recusou. Um amigo viria buscá-la. Em sinal de gratidão, avisou-me que um dos pneus do meu carro estava baixo. Aí fui eu que agradeci.
Não sei se na mesma semana, ou na seguinte, ela entrou na minha sala. Anunciou-se à secretária de forma estranha: "É a moça da garagem." Sim, era ela, com uma pequena pasta à mostra.
Resumindo: fizera um romance. Não conhecia ninguém na área editorial ou literária. Perguntou se podia deixar os originais, não tinha pressa, queria uma opinião.
Com pequenas variantes, isso já aconteceu outras vezes e acontece com todos nós, que de alguma forma fazemos parte da tribo que se dedica a esse tipo de ofício.
Oferece-lhe um café e abri o original. Não havia indicação de autor ou autora. O título era uma charada "S.O.S". Havia uma epígrafe de São João da Cruz, falando da escura noite da alma, e uma estrofe de Bandeira: "Mas para quê/ tanto sofrimento/ se lá fora o lento/ deslizar da noite".
Elogiei as epígrafes e abri a primeira página. Começava assim: "Salve a minha alma!". Levei um susto. Como início de romance, era péssimo. Mesmo assim, senti alguma coisa de íntimo naquele grito ou naquele desespero. Fora esse o início de um romance que não cheguei a terminar.
Ia perguntar onde ela encontrara aquele original tão perdido que nunca mais me lembrara dele. Não foi preciso. Ela se identificou: "Sou filha de Martha. Você deixou este original com ela. Antes de morrer, pediu-me que o entregasse."
Naquele dia a moça aceitou a carona.
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Um comentário:
AMIGO BLOGUEIRO,
VOCÊ ESCREVE MUITO BEM, CURTI MUITO SUAS POSTAGENS.
FELICIDADES;
FÁBIO LUÍS STOER
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